PARA ALÉM DA GRAMÁTICA. O adjetivo “chinês” já foi muito usado no Brasil para nomear produtos sem marca, geralmente miudezas ou mesmo eletrônicos de baixo preço, dos quais não se esperava grande durabilidade – e não raro alguém dizia com ar de surpresa que o seu objeto “xing-ling” estava durando, era bom, funcionava etc., mesmo sem ostentar uma “marca”. “Xing-ling”?
Em terras brasileiras, todos sabem o que vem a ser “xing-ling” (supõe-se que assim se escreva) e é bem possível que se trate de um termo de natureza onomatopaica (imitação de voz ou ruído) por meio do qual se tente reproduzir o som dos nomes dos chineses, muitos dos quais terminados em “-ng” após a transliteração do chinês para o inglês.
Vale dizer que o “g” não é pronunciado em chinês (pense na pronúncia do inglês “long”, que se aproxima do som original). No Brasil, porém, a tendência é pronunciar todas as letras, inclusive esse “g”. “Xing-ling” seria, então, uma gozação com os nomes chineses (Chang, Wang, Fang, Ming, Yang, Wong, Tang, Huang…).
Não vou negar que circula pela internet uma versão bem engraçada de um suposto significado da junção de dois ideogramas chineses (Xing e Ling) que, juntos, significariam “zero estrela”, o que se encaixaria no conceito de produto de baixa qualidade, desde que considerada a estrela um símbolo de qualidade, o que tem sentido por aqui, mas provavelmente não na China.
Acresce-se a isso o fato de cada som poder corresponder a diferentes significados, de acordo com a entonação da pronúncia. O chinês (na verdade, o termo engloba um grupo de línguas faladas na China, das quais a mais importante é o mandarim) é uma língua tonal. Como se vê, é bem complicado arriscar uma explicação com base no suposto significado da expressão. O fato de se ter disseminado no Brasil é mais um fator a corroborar a hipótese de analogia com a sonoridade dos nomes de pessoas chinesas. Etimologia popular é uma aventura divertida, mas, mesmo quando a história é boa, o melhor é desconfiar.
Já há um bom tempo, o adjetivo “chinês” ganhou uma conotação bem diversa, não traduzível por “xing-ling”. Frequentemente associado ao substantivo “crescimento”, passou a ser usado no âmbito da economia para indicar rapidez e grande escala. Crescimento chinês é um crescimento exponencial e rápido. Diz um executivo de uma grande rede de lojas brasileira: “Todas as grandes plataformas do mundo dependem muito de escala. A minha estratégia é crescimento chinês em número de usuários, é escala”.
Ultimamente algumas pessoas têm feito uso político do adjetivo “chinês”, associando-o ao coronavírus. Por meio da expressão “vírus chinês”, atribui-se à China culpa ou responsabilidade pelo surgimento do vírus. Para evitar estigmatização de povos, regiões ou grupos, o Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus criou o termo Covid-19, acrônimo de “coronavirus disease” (doença do coronavírus) seguido da última dezena do ano do primeiro caso. O fato é que, para enfrentar o problema, a união é muito mais sensata que a discórdia.
Há algum tempo, os brasileiros usavam o adjetivo “paraguaio” para dizer que um produto era falsificado. Era a época do contrabando de toda sorte de mercadorias que levas de brasileiros faziam no país vizinho, os chamados “sacoleiros” ou muambeiros. Hoje quase não se ouve mais esse uso pejorativo do adjetivo pátrio “paraguaio”.
Os brasileiros têm o hábito de depreciar não apenas os outros como também a si próprios, invocando para tanto, em sentido depreciativo, adjetivos gentílicos de povos originários. “Tupiniquim” aparece nos mais diversos contextos, sempre que se pretende desmerecer o brasileiro, mostrando-o como ridículo ou atrasado. Um exemplo, entre muitos: “Historicamente, cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Recife passaram por processos de higienização social em suas regiões centrais —vide a Belle Époque tupiniquim que perdurou do fim no Império até a Primeira República”, extraído de um texto, aliás, bem interessante.
Acredito que muita gente não perceba quanto há de depreciativo nesse uso de “tupiniquim” ou não tenha parado para pensar nisso. Espero que nossos encontros aqui no Português Claro sirvam para motivar a reflexão acerca da nossa língua.