A palavra é “mandatário”

CAÇA-PALAVRAS. A palavra escolhida para inaugurar a seção Caça-Palavras é “mandatário”. Embora seja muito usada na imprensa para fazer referência ao presidente da República e, algumas vezes, ao detentor do principal cargo executivo de uma unidade administrativa, seu significado é mais amplo.  

Vale lembrar que mandatário é aquele que recebe mandato ou procuração para agir em nome de outrem. É por esse motivo que vereadores, deputados e senadores – não apenas o presidente, os governadores e os prefeitos –, ao serem eleitos, se tornam mandatários do povo.

No título abaixo, o termo “mandatário” aparece como sinônimo de presidente da República:

Ex-mandatário argentino Menem volta a se casar com primeira esposa

O ex-presidente argentino Carlos Menem (1989-1999), de 90 anos, voltará a se casar com a primeira esposa, Zulema Yona, de quem se divorciou em 1990, anunciou um programa de televisão argentino.

Menem, senador desde 2005, acaba de superar uma pneumonia que o deixou internado por 15 dias em junho.

A leitura do próprio texto, no entanto, revela que Menem é senador, portanto rigorosamente ainda é mandatário (tem mandato). Assim, o título da notícia carrega uma inverdade, pois Menem não é um “ex-mandatário”, conquanto seja um “ex-presidente”.

Para evitar esse tipo de impropriedade, costuma-se usar a expressão “o principal mandatário do país” para fazer referência ao presidente. É uma forma de distinguir o mais alto cargo da República e de lembrar a todos que, mesmo detendo tão alto posto, o presidente é um representante do povo e em nome deste é que exerce o poder. Foi assim que Raquel Dodge, quando era procuradora-geral da República, se referiu ao atual presidente por ocasião de sua eleição:

É responsabilidade legal do principal mandatário zelar pela Constituição, pelo livre exercício do Legislativo, do Judiciário, do Ministério Público.

No título Ex-prefeito de Ibititá nega acusações do atual mandatário da cidade, quem seria “o atual mandatário da cidade”? Certamente, o texto se refere ao prefeito atual, mas, antecedido do artigo definido “o” (“o mandatário”), o termo sugere que o prefeito seja o único a ter mandato na cidade, o que, naturalmente, não condiz com a verdade, uma vez que existem os vereadores.

Mais curioso é o uso feito no trecho abaixo, em que o “mandatário” é o príncipe Albert II de Mônaco, um membro da monarquia:

O Príncipe Albert II de Mônaco foi diagnosticado nesta quinta-feira (19) com Covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus. O chefe de estado seguirá com seu trabalho em uma parte isolada do palácio, segundo a monarquia.

Em um comunicado oficial, o principado anunciou que seu mandatário foi submetido a um teste no início da semana, e esclareceu que a sua saúde “não é motivo de preocupação”.

No mesmo veículo de comunicação, atribui-se mandato ao rei da Espanha. Vejamos o que diz o dicionário Aurélio acerca da palavra “mandato”, no sentido político:

Poder político outorgado pelo povo a um cidadão, por meio de voto, para que governe a nação, estado ou município, ou o represente nas respectivas assembleias legislativas; por extensão, período de duração de um mandato.

Reis e príncipes herdeiros, que só saem do poder em caso de morte ou de abdicação, têm reinado, não exatamente um mandato. Existem monarquias eletivas, das quais um bom exemplo está no Vaticano, onde o papa é eleito por um conclave e tem cargo vitalício. É facultado ao papa o direito de renunciar, como ocorreu com Bento XVI. O período em que esteve no mais alto posto da hierarquia foi o seu papado, não o seu mandato.  

Pode dar-se o caso de as pessoas associarem “mandatário” à ideia de “mandar” e daí derivarem esse uso de mandatário como chefe de Estado. Existe, sim, relação entre mandatário e mandar, mas, mesmo nesse sentido, mandatário não é aquele que manda, e sim aquele que executa as ordens (ou mandados) de um mandante (este sim é aquele que manda).

Juridicamente também se chama de mandatário ao criminoso que age sob ordens de um mandante. Veja-se o caso, até hoje não desvendado, do assassinato da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro. Há dois suspeitos presos, que, ao que tudo indica, executaram ordens de alguém, cuja identidade continua incógnita. Quem deu a ordem foi o mandante do crime.

Em sua origem latina (“mandatarĭus, a, um”), o termo indicava “aquele que é encarregado de uma comissão”.  “Mandatório”, o adjetivo, este sim está relacionado a um comando ou ordem ou àquilo que é obrigatório. É assim que aparece no fragmento abaixo:

O confinamento mandatório tem se generalizado como resposta à Covid-19 e, diferentemente do voluntário, impõe custos importantes às pessoas; seu potencial para a manipulação política é assim elevado.

Há quem sugira ser “mandatório” um aportuguesamento do inglês “mandatory”, que tem esse mesmo sentido (“obrigatório”). O dicionário Houaiss indica ter o termo aparecido entre nós em 1920, mas lhe atribui a origem latina (mandatorĭus, a, um, relativo a mandado, ordem, comissão). O que se pode dizer é que o termo, sim, é de origem latina, como o são muitas das palavras do inglês. Como a datação no português é relativamente recente (“mandatário” é de 1716, segundo a mesma fonte), o termo “mandatório” pode ter chegado à nossa língua pelo inglês. Importa não confundir as duas coisas: mandatário e mandatório têm significados diferentes.

“Mandar”, por sua vez, não significa apenas “dar ordens”. Um dos sentidos desse verbo é o de enviar (mandar flores, mandar presentes, mandar recados). Hoje vou deixar aqui o áudio de uma canção muito conhecida de um certo “rei” que gosta de “mandar flores”, feito um amante à moda antiga.

Publicado por Thais Nicoleti

Thaís Nicoleti é formada em português e linguística pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e licenciada pela Faculdade de Educação da mesma universidade.

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