QUESTÃO DO LEITOR. GRAMATICAIS. Nosso leitor Wilson Lima de Oliveira, que é técnico judiciário na Vara da Família, Infância e Juventude de Balneário Camboriú, em Santa Catarina, traz uma interessante questão relacionada à ocorrência ou não de crase no pronome demonstrativo “aquele”.
Vejamos o fragmento enviado por ele:
“A violação ao dever de fidelidade não gera, por si só, dano moral. Àquele que reclama compensação pecuniária pelo dano moral cumpre não só provar a infidelidade, mas também a ocorrência de uma conduta pública indiscreta”.
Em primeiro lugar, convém lembrar que a crase (fusão de dois “aa”), embora ocorra com mais frequência no encontro da preposição “a” com o artigo definido “a” (Foi à igreja; Foi à escola), portanto antes de uma palavra feminina, também ocorre, entre outras situações, quando essa preposição antecede os pronomes demonstrativos iniciados pela vogal “a” (aquele, aqueles, aquela, aquelas, aquilo), caso em que surgem as formas àquele, àqueles, àquela, àquelas e àquilo.
Para saber se o pronome “aquele” deveria mesmo estar craseado, será necessário analisar sintaticamente o período em que ele aparece, verificando dessa forma a que elemento ele está ligado e, finalmente, se existe uma preposição “a” nele embutida.
Estamos diante de um período complexo, cujo centro é o verbo “cumprir”. Claro está que o verbo aqui não foi empregado no seu sentido corriqueiro, a saber, o de realizar algo que foi prometido (Ele sempre cumpre o que promete). Como é frequente nos textos jurídicos, “cumprir” está usado no sentido de “ser necessário”. Nessa acepção, seu sujeito não é um indivíduo, mas, em geral, uma ação. Dizemos que algo (ação) cumpre (Diante do ocorrido, cumpre manter-se atento).
Vemos, portanto, que, no período em questão, o sujeito de “cumprir” é representado pela oração “não só provar a infidelidade, mas também a ocorrência de uma conduta pública indiscreta”. É isso o que cumpre, ou seja, o que é necessário. O verbo “cumprir” admite, embora nem sempre o exija, o complemento objeto indireto (algo cumpre a alguém), que indica em quem recai o interesse da ação (Cumpre ao réu provar a sua inocência, isto é, “provar a inocência” [sujeito] cumpre “ao réu” [objeto indireto]).
Chegamos, assim, à análise do pronome “aquele” no período: provar a infidelidade […] cumpre àquele que reclama compensação pecuniária pelo dano moral. Em outras palavras, cumpre a ele (a alguém) provar alguma coisa. A preposição “a” antes de “aquele” provoca a fusão dos dois “aa” (“crase”, em grego, quer dizer “fusão”). Em vez de “cumpre a aquele”, escrevemos “cumpre àquele”, fazendo a preposição fundir-se no “a” inicial de “aquele”.
Vale observar que o fragmento enviado por nosso leitor teria um ganho de clareza se nele fosse feito um ajuste quanto ao paralelismo sintático. Esse é outro assunto, que vamos discutir aqui no Português Claro mais adiante, mas, por ora, compare as duas redações abaixo (a primeira é a original):
A violação ao dever de fidelidade não gera, por si só, dano moral. Àquele que reclama compensação pecuniária pelo dano moral cumpre não só provar a infidelidade, mas também a ocorrência de uma conduta pública indiscreta.
A violação ao dever de fidelidade não gera, por si só, dano moral. Àquele que reclama compensação pecuniária pelo dano moral cumpre provar não só a infidelidade mas também a ocorrência de uma conduta pública indiscreta.
A pessoa terá de provar duas coisas (infidelidade e ocorrência de conduta pública indiscreta), portanto a estrutura correlativa “não só… mas também” (de adição) deve organizar esses dois elementos, ambos complementos de “provar”, sendo posta depois do verbo “provar”. Como temos uma correlação aditiva, dispensamos a vírgula.
Pra não ficarmos sem um áudio hoje, vamos ouvir o Fagner, que tratou do tema da infidelidade no plano da poesia, bem longe dos tribunais. Aqui vai a canção “Deslizes”:
Deslizes, autoria de Michael Sullivan e Paulo Massadas
Não sei por que/ Insisto tanto em te querer/ Se você sempre faz de mim/ O que bem quer/ Se ao teu lado/ Sei tão pouco de você/ É pelos outros que eu sei/ Quem você é//
Eu sei de tudo/ Com quem andas, aonde vais/ Mas eu disfarço o meu ciúme/ Mesmo assim/ Pois aprendi/ Que o meu silêncio vale mais/ E desse jeito eu vou trazer/ Você pra mim//
E como prêmio/ Eu recebo o teu abraço/ Subornando o meu desejo/ Tão antigo/ E fecho os olhos/ Para todos os teus passos/ Me enganando/ Só assim somos amigos//
Por quantas vezes/ Me dá raiva de querer/ Em concordar com tudo/ Que você me faz/ Já fiz de tudo/ Pra tentar te esquecer/ Falta coragem pra dizer/ Que nunca mais//
Nós somos cúmplices/ Nós dois somos culpados/ No mesmo instante/ Em que teu corpo toca o meu/ Já não existe/ Nem o certo, nem errado/ Só o amor que por encanto/ Aconteceu//
E é só assim que eu perdoo/ Os teus deslizes/ E é assim o nosso jeito de viver/ Em outros braços/ Tu resolves tuas crises/ Em outras bocas/ Não consigo te esquecer/ Te esquecer.