Dividir “por dois” e dividir “em dois”

GRAMATICAIS. DEU NA MÍDIA. Recentemente, em agosto deste ano, a queda de um avião em Istambul criou confusão nas redações de jornais e revistas, que se viram às voltas com uma inusitada questão de concordância. Para uns, o avião partiu-se em dois; para outros, a aeronave partiu-se em duas, mas a maioria parece ter optado por usar o numeral “dois” sem flexão, independentemente do termo anterior, como veremos a seguir.

Na revista Veja, o título foi este: Aeronave se partiu em dois e sofreu muitos danos durante a aterrissagem no Aeroporto Internacional de Karipur; na IstoÉ, foi este: Avião sai da pista e se parte em dois após pouso em Istambul. O jornal NH, de Novo Hamburgo (RS), trouxe a seguinte construção: Redes de TV locais relataram que a fuselagem da aeronave partiu-se em duas (vale notar que o pronome “se” está incorretamente colocado, afinal “relataram que … se partiu).

Mais sensato parece ter sido o texto da agência de notícias AFP, reproduzido como legenda de foto (também na IstoÉ): A fuselagem da aeronave, da companhia privada Pegasus, partiu-se ao meio e pegou fogo depois que o aparelho saiu da pista do aeroporto internacional Sabiha Gökçen.

Caso semelhante a esse surgiu há poucos dias na imprensa também, agora tratando do racha na base do governo: O prefeito desistiu de disputar a reeleição, a base do governo rachou em dois, um primo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) entrou na disputa, e o PT, depois de quatro derrotas seguidas, tenta retomar a prefeitura.

Aparentemente, o que embasa a decisão de manter “dois” invariável é a suposta semelhança com a construção “dividir por dois”, em que “dois” é uma grandeza matemática, um número. Dividir por dois significa dividir em duas partes iguais; dividir em dois, no entanto, não parece ter exatamente o mesmo sentido. Vejamos.

Podemos dividir uma sala em dois ambientes ou mesmo dividir uma turma de alunos em duas turmas de alunos. Neste último caso, sendo uma turma divisível em duas turmas, o numeral faria a flexão deixando subentendido o termo anterior flexionado (turma/ turmas), donde seria possível dizer que se dividiria uma turma de alunos em duas (uma turma em duas turmas).

Uma sala grande pode ser dividida em duas salas (uma de estar e uma de jantar, por exemplo), portanto seria possível dizer que um biombo dividia a sala em duas (duas salas menores). Um vaso que se quebra em mil pedaços (ou inúmeros pedaços), porém, não se divide em “mil vasos”, portanto não dizemos que “o vaso se partiu em mil” – precisamos completar a frase (o vaso partiu-se em mil pedaços, mil fragmentos, mil cacos).

Esse mesmo vaso, se rachado em duas partes, poderia estar “rachado em dois”? Se assim fosse, estaríamos considerando a inusitada possibilidade de um vaso rachado transformar-se em dois vasos (!).  Foi, aliás, o que fizeram os redatores no caso do avião partido em dois ou da aeronave partida em duas (!).

Como se vê, é preciso analisar caso a caso e verificar a coerência semântica da frase final. O problema aparece com verbos desse mesmo campo semântico (dividir, separar, rachar, quebrar, partir-se).

Não convém dizer que o avião se partiu em dois, pois, nesse caso, estamos supondo que se tenha transformado em dois aviões (o mesmo valendo para uma aeronave partir-se em duas). Embora a concordância não nos incomode os ouvidos, a afirmação soa incoerente. Por outro lado, uma sala grande pode dividir-se em duas salas menores, como uma turma pode dividir-se em duas menores.

A solução dada pela agência de notícias AFP (reproduzida em legenda de foto pela IstoÉ) foi, de fato, a melhor: a aeronave partiu-se ao meio. Note que ninguém esperaria em tal contexto que a divisão se desse exatamente ao meio, questão que perde relevância nas circunstâncias, do mesmo modo que ninguém contaria os mil fragmentos do vaso quebrado.

Caso se pretendesse insistir no numeral “dois” ou “duas”, seria necessário usar um substantivo depois dele. Tal qual o vaso que se parte em mil pedaços, o avião se parte em dois pedaços. A omissão desse substantivo levará a que se tome o numeral como ligado retroativamente ao termo anterior (avião partiu-se em dois = avião partiu-se em dois aviões!).  

Veja-se o caso do racha na base do governo. Se dissermos que “a base (se) rachou em duas”, estaremos considerando a formação de duas bases no lugar de uma, o que não parece descrever o que, de fato, acontece. Melhor, portanto, dizer que “a base rachou em dois grupos”, que continuarão sendo a base. Vale notar que, na expressão “dividir por dois”, “dois”, tomado como grandeza matemática, não se submete à concordância (dividir por dois a herança, dividir por dois os bens dos sócios, dividir por dois a fortuna amealhada).

Temos, portanto, que “dividir por dois” é fazer uma operação matemática de divisão em partes iguais, mas “dividir em dois” é fazer que algo passe de um estado (inteiro) a outro (duas metades ou duas partes), caso em que ao numeral caberá adjetivar o substantivo (uma coisa se converte em duas outras): dividiu por dois a herança, dividiu a herança em duas partes iguais.

Assim pode-se dizer que, com a preposição “em”, temos um predicativo (Dividiu a maçã em duas metades; Dividiu a pizza em seis fatias), prevalecendo a ideia de mudança de estado (transformar o inteiro em partes); com a preposição “por” seguida de um numeral, temos a operação matemática (Divida-se o total por dois e chegar-se-á ao resultado); ainda com a preposição “por”, alternando-se com “entre”, temos a ideia de distribuição (Dividiu os bens pelos herdeiros; Dividiu o dinheiro entre os amigos).

Na canção “Sete cidades”, da Legião Urbana (de Marcelo Bonfá, Dado Villa-Lobos e Renato Russo), que você ouve clicando aqui embaixo, observe a construção “me partiu em dois”, por meio da qual o poeta se refere a si mesmo (o amor parte o seu “eu” em dois “eus” menores, um dos quais, a metade ausente, é a pessoa amada, em clara referência ao mito do amor platônico).

Já me acostumei com a tua voz/ Com teu rosto e teu olhar/ Me partiu em dois/ E procuro agora o que é minha metade//

Quando não estás aqui/ Sinto falta de mim mesmo/ E sinto falta do meu corpo junto ao teu//

Meu coração é tão tosco e tão pobre/ Não sabe ainda os caminhos do mundo/ Quando não estás aqui/ Tenho medo de mim mesmo/ E sinto falta do teu corpo junto ao meu//

Vem depressa pra mim/ Que eu não sei esperar/ Já fizemos promessas demais/ E já me acostumei com a tua voz/ Quando estou contigo estou em paz//

Quando não estás aqui/ Meu espírito se perde/ Voa longe.

Publicado por Thais Nicoleti

Thaís Nicoleti é formada em português e linguística pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e licenciada pela Faculdade de Educação da mesma universidade.

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