Concordância com porcentagens

GRAMATICAIS. DEU NA MÍDIA. Quando o sujeito de uma oração é uma porcentagem, como se faz a concordância verbal? Vale lembrar que esse tipo de construção é cada vez mais frequente. Próprio dos textos científicos, migrou para a imprensa, que diariamente reproduz pesquisas e resultados estatísticos.

Quem consultar gramáticas tradicionais, entretanto, pouco ou nada encontrará sobre o tema. Dito isso, como proceder? É claro que a força do uso é que acaba constituindo a regra, mas, nesse caso, o que vemos é grande oscilação e explicações convincentes para todos os gostos.

Vamos trazer para cá três exemplos extraídos de uma mesma página de jornal. Um dos títulos era este: “Quase 60% dos consumidores têm adiado compras”. Empregou-se, corretamente, a forma acentuada do verbo “ter”, que indica terceira pessoa do plural. Esse caso é o mais simples, pois o núcleo do sujeito (60%) e seu especificador (consumidores) são, ambos, termos que pedem plural.

A dúvida surge quando um dos termos (núcleo ou especificador) está no singular e o outro está no plural. Isso nos leva ao segundo exemplo: “Pouco mais de 50 mil postulantes receberam verbas de seus partidos para o pleito, mas 80% do valor liberado (R$ 646 milhões de R$ 807 milhões) foram destinados a cerca de 4.600 candidaturas”.

O redator fez a concordância com o núcleo (80%), o que levou o verbo para o plural. Não há como condenar essa construção, uma vez que o verbo concorda com o núcleo do sujeito, observada a regra geral de concordância verbal.

É, no entanto, bastante comum – e corroborada por um autor do peso de Evanildo Bechara – a concordância atrativa em situações semelhantes a essa (…mas 80% do valor liberado foi destinado a cerca de 4.600 candidaturas). O verbo se deixa contaminar pelo termo que lhe é mais próximo, o qual, nessas construções, é também aquele que carrega conteúdo nocional.

Acresce-se que a porcentagem é uma abstração, por vezes sentida como um elemento neutro, donde ser muito comum que se diga que “50% da população votou em determinado candidato” ou que “50% das pessoas votaram no candidato”, tomando os termos “população” e “pessoas” como aqueles aos quais se refere o verbo.

O que se pode dizer é que os dois critérios (concordância com o núcleo e concordância com o especificador) são igualmente aceitos na norma-padrão. Uma situação, porém, tende a desafiar o nosso raciocínio. A manchete da Folha de S. Paulo (26 out.2020) servirá de exemplo: “Menos de 1% dos candidatos retêm 80% do fundo eleitoral”.

O redator optou pela forma de terceira pessoa do plural do verbo “reter” (eles retêm), o que nos leva a concluir que ele fez o verbo concordar com o especificador (concordância atrativa). Ainda que tecnicamente correta, a escolha parece ter sido burocrática. Vejamos por quê.

Vale, de saída, observar que se optou pelo plural no único caso em que a maioria converge para o singular, ou seja, aquele que envolve 1%.

Além dessa convergência para o singular em razão de se tratar da unidade na posição de núcleo, concorreria para a opção pelo singular o fato de o verbo da frase ser um derivado de “ter”, que, nas terceiras pessoas, apresenta formas idênticas quanto à pronúncia, apenas distintas por um acento diferencial (retém/ retêm).

Note-se que a contaminação do verbo pela proximidade com o plural se manifesta na pronúncia e desta migra para a grafia. No caso de formas indistintas quanto à pronúncia, claro está que não se verifica contaminação. O somatório das duas situações faria a concordância convergir naturalmente para o singular: Menos de 1% dos candidatos retém 80% do fundo eleitoral.

Segundo Evanildo Bechara, nos casos em que o núcleo é 1%, vale o singular: Menos de 1% dos candidatos do partido conseguiu eleger-se. Trata-se, portanto, de um caso especial. Vale ainda lembrar que a concordância atrativa, sendo motivada pela realização oral da língua, esmorece diante de formas verbais que não se distinguem na pronúncia, sendo apenas diferenciadas na escrita por uma convenção gráfica.

Sempre é bom lembrar que a língua não é uma ciência exata, tampouco um corpo de regras anteriores à prática.

Publicado por Thais Nicoleti

Thaís Nicoleti é formada em português e linguística pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e licenciada pela Faculdade de Educação da mesma universidade.

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