GRAMATICAIS. Um trecho de artigo jornalístico, muito bem escrito (e até um tanto pomposo), levantou uma questão sobre o uso das preposições “sob” e “sobre”. Vejamos o fragmento que interessa à nossa discussão: “[…] o Supremo Tribunal Federal chancelou, sobre práticas antissemitas, que esse tipo de discurso de ódio é inconciliável com os padrões éticos e morais definidos na Constituição Federal e no mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o Estado democrático”.
A preposição “sobre”, como vemos, aparece corretamente empregada no sentido de “acerca de” ou “a respeito de” (acerca de ou a respeito de práticas antissemitas), mas sabemos que ela também participa de uma oposição semântica com a preposição “sob”. O par “sobre”/“sob” indica posições opostas: “sobre” quer dizer “em cima”, e “sob” quer dizer “embaixo”, certo? Nesse sentido, faz muita diferença dizer que algo está sobre a mesa ou sob a mesa, por exemplo.
A preposição “sob”, no entanto, aparece em um bom número de expressões nas quais nem sempre se percebe nitidamente a ideia de estar “embaixo” de algo. Quando dizemos que uma pessoa está sob o jugo de outra, apontamos a sua posição inferior em uma relação de dominação, mas essa ideia pode não estar tão clara quando usamos expressões como “sob nova direção”, “sob a influência”, “sob a égide de”, “sob juramento”, “sob medida”, “sob encomenda” etc.
Ainda que não seja explícito, o traço semântico de “posição inferior” está lá. Basta pensar um pouquinho. Em “sob nova direção”, está claro que o funcionamento da empresa estará submetido às determinações da nova diretoria; em “sob influência”, parece claro que quem sofre a influência de outrem está, de alguma forma, em posição inferior ou subordinada; em “sob a égide de”, temos a ideia de amparo, de estar sob a proteção de algo ou alguém; em “sob juramento”, estamos submetidos a uma regra moral e legal.
Um terno feito “sob medida” será uma peça de roupa costurada de acordo com as medidas do cliente, ou seja, o corte se submeterá a essas medidas; o mesmo vale para “sob encomenda”, ou seja, a realização de algo de acordo com o que tiver sido encomendado, em relação de subordinação ao desejo de quem fez a encomenda.
A confusão entre “sobre” e “sob”, no entanto, é mais comum do que possa parecer à primeira vista. Uma repórter, há muitos anos, abordou o cantor Caetano Veloso depois de um show em que ele foi vaiado pela plateia e soltou a pergunta: “Caetano, como se sente ao sair do palco sobre as vaias da plateia?”. Ele não teve dúvidas e lascou logo a resposta: “Você tem razão: eu saí sobre as vaias. Foi isso mesmo!”… É claro que a intenção da moça era dizer “sob as vaias”, ou seja, debaixo das vaias, mas Caetano foi rápido e mostrou que se sentia superior às vaias…
Voltemos ao nosso fragmento de hoje, selecionado por causa da passagem “os padrões éticos e morais definidos na Constituição Federal e no mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o Estado democrático”. É provável que o autor do texto tenha tomado a preposição “sob” no sentido de “de acordo com” – e poderia nesse caso argumentar que “sob medida” é o mesmo que “de acordo com certa medida”. Como vimos, mesmo no caso de “sob medida”, em que a relação de conformidade parece ser a mais imediata, existe uma ideia de sujeição embutida na preposição “sob”. Essa circunstância nos devolve à questão de hoje.
O problema está no verbo “erguer-se”, pois algo (o Estado democrático) se ergue sobre uma base ou alicerce, que, no caso, são os padrões éticos e morais. A noção de submissão ou de estar embaixo, própria da preposição “sob”, não se coaduna com o conteúdo semântico do verbo “erguer-se”.
O leitor tem a impressão de que o Estado se ergue embaixo dos padrões éticos e morais. Imaginemos um contexto um pouco diferente, no qual pretendêssemos dizer que, mesmo sob a imposição de forças contrárias, algo se ergue. Veja, por exemplo uma construção como esta: Um movimento revolucionário se erguia paulatinamente sob o regime de exceção. Claro está que o regime de exceção não é a base sobre a qual se erguia o movimento revolucionário, mas um elemento repressor que, no entanto, não impediu que o movimento surgisse. A oposição entre “sob” e “erguer-se” é intencional nesse caso. De fato, alguma coisa se ergue sob outra.
Na passagem trazida para esta reflexão, os padrões éticos e morais constituem a base sobre a qual se ergue o Estado democrático, não uma força contrária a ele. Portanto, melhor teria sido esta formulação: “… os padrões éticos e morais definidos na Constituição Federal e no mundo contemporâneo, sobre os quais se ergue e se harmoniza o Estado democrático”.
Ótimo comentário.
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