“Assistiu acontecer”: sim ou não?

GRAMATICAIS. REVISORES. O fragmento abaixo, extraído de texto jornalístico, foi selecionado por trazer um uso irregular do verbo “assistir”. Ao lado dessa questão, vale observar o emprego dos possessivos com termos que exprimem graus de parentesco, que, conforme explicado em publicação anterior, constitui redundância, embora não seja considerado incorreto.

Por trás dessa dinâmica estão ciclos que reproduzem sistemas de dominação e que perpetuam a desigualdade de gênero que Débora assistiu acontecer com suas duas filhas ainda meninas, assim como Milena soube ter acontecido com sua mãe.

A propósito do verbo “assistir”, observamos que está empregado como transitivo direto, no sentido de “ver” ou “presenciar”, caso em que, segundo a tradição, é transitivo indireto. Como sabemos, “assistir” pode ser transitivo direto, mas apenas quando significa “ajudar”, “auxiliar”, “prestar assistência” (A enfermeira assistiu o médico; O governo assistiu os desabrigados); no sentido usado no texto, equivalendo a “ver”, aparece em construções como Assistiu ao jogo ou Assistimos a cenas de horror. O verbo tem outros significados, que, no entanto, não serão examinados aqui.

O problema da construção acima é que a estrutura escolhida requer verbo transitivo direto (um dos auxiliares causativos ou sensitivos) antes de uma oração infinitiva que tem valor de objeto direto. Não cabe o transitivo indireto nessa posição.

Os auxiliares causativos são os verbos mandar, deixar e fazer em construções do tipo mandar entrar, deixar ver, fazer rir, nas quais provocam a ação expressa pelo infinitivo. Os auxiliares sensitivos são os verbos ver, ouvir e sentir em construções similares, como viu fazer, ouviu cantar, sentiu aproximar-se, nas quais indicam o modo de percepção da ação expressa pelo infinitivo. O que todos esses auxiliares têm de comum é serem transitivos diretos.

É essa transitividade que justifica ser o sujeito desses infinitivos um pronome oblíquo átono de objeto direto (me, te, se, nos, vos, o, a, os, as), como se vê nestas construções: Mandou-o entrar, Deixou-os sair, Não me faça rir, Não a viu chegar, Ouviu-a cantar, Sentiu-o aproximar-se. No registro oral brasileiro, é comum ouvirmos o pronome do caso reto nessa posição (Mandou ele entrar, Deixa eu ver, Não viu ela chegar), em desacordo com a tradição da língua.

O verbo “assistir”, no sentido de “ver”, é transitivo indireto. O fato de dois verbos serem sinônimos não os torna intercambiáveis em qualquer contexto, pois verbos podem ter regimes diferentes. No tipo de estrutura escolhido pelo redator do fragmento em questão, cabe “ver”, mas não cabe “assistir”.

Assim, no lugar de “[…]a desigualdade de gênero que Débora assistiu acontecer com suas duas filhas ainda meninas, assim como Milena soube ter acontecido com sua mãe”, bem usaríamos o verbo “ver”. Vejamos:

… a desigualdade de gênero que Débora viu acontecer com as duas filhas ainda meninas, assim como Milena soube ter acontecido com a mãe.

Em tempo: seria correto dizer “[…]a desigualdade de gênero a que Débora assistiu várias vezes na vida“, mas trata-se de outra construção (sem o infinitivo “acontecer”). 

Publicado por Thais Nicoleti

Thaís Nicoleti é formada em português e linguística pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e licenciada pela Faculdade de Educação da mesma universidade.

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