GRAMATICAIS. REVISORES. Nos dois trechos abaixo, o primeiro escrito por uma roteirista de TV e o segundo por um desembargador, veremos a locução conjuntiva “posto que” aparecer com nítido valor causal, ou seja, equivalente a “uma vez que”. Vamos aos fragmentos, ambos publicados na imprensa:
“Não sou roteirista, mas dentista. O que eu tenho com isso?” Tudo, posto que qualquer um é roteirista da própria vida.
“Os documentos não comprovam a hipossuficiência do apelante [Garcia], mas, ao contrário, posto que é deputado estadual e possui remuneração bem acima de três salários mínimos”.
Esse uso popularizou-se no Brasil, mas a locução “posto que”, em sua origem, é concessiva (equivalente a “embora”), como se vê ainda em Portugal e em muitos autores brasileiros também. Dito isso, os dois fragmentos acima ganhariam em precisão se neles fosse usada uma conjunção causal (já que, uma vez que, porque etc.).
Os defensores do uso da locução com sentido causal sempre se lembrarão do emprego dela feito por Vinicius de Moraes no belíssimo “Soneto da Separação”, cujos versos finais, em que o eu lírico fala do amor, são muito conhecidos: “Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure”. De fato, Vinicius toma a locução como causal – já que o amor é chama, não há como desejar que seja imortal, ideia que se resolve com o paradoxo mais famoso da literatura brasileira: “que seja infinito enquanto dure”.
Alguns gramáticos dirão que Vinicius lançou mão de uma licença poética, que é uma espécie de “autorização” para transgredir uma norma gramatical em nome de um propósito estético. Nesse caso, teríamos de buscar o propósito estético dessa escolha no contexto. Outra possibilidade, menos glamorosa, é que esse uso já estivesse razoavelmente fixado na linguagem cotidiana brasileira e tenha soado natural aos ouvidos do poeta.
Machado de Assis, por exemplo, usa regularmente essa locução, sempre com sentido concessivo. É interessante, aliás, observar uma passagem de seu romance “Quincas Borba”, a qual um leitor apressado de hoje, que desconhecesse o sentido de “posto que”, poderia interpretar incorretamente. Vejamos:
Quincas Borba leu-me daí a dias a sua grande obra. Eram quatro volumes manuscritos, de cem páginas cada um, com letra miúda e citações latinas. O último volume compunha-se de um tratado político, fundado no Humanitismo; era talvez a parte mais enfadonha do sistema, posto que concebida com um formidável rigor de lógica.
Quis dizer o narrador que, embora concebida com um formidável rigor de lógica, a obra era enfadonha, ou seja, opôs um elogio a um demérito. Um leitor apressado poderia pensar que a obra era enfadonha por causa do rigor de lógica. É claro que a ideia não se sustentaria no contexto da obra, mas ignorar o sentido de “posto que” pode tornar a compreensão do texto mais difícil.
A conjunção concessiva sugere oposição de ideias, mas não uma oposição direta como a das conjunções adversativas (mas, porém, todavia etc.). A concessiva introduz uma oração que indica uma circunstância de oposição que é insuficiente para mudar o curso de uma ação (Por mais que tentasse, não conseguia ler as letras miúdas; Embora chovesse forte, não desistiram do passeio; Posto que não concordasse com as ideias do grupo, decidiu endossá-las).