Redundância sintática

PARA ALÉM DA GRAMÁTICA. Há ocasiões em que, embora se perceba que algo no texto está impreciso ou “estranho”, fica difícil dizer o que exatamente está acontecendo. Em geral, quando isso ocorre, o problema é sintático. Vejamos um fragmento, extraído de texto de um site bem conhecido: 

Na encíclica Fratelli tutti (2021) adverte: “estamos no mesmo barco, ou nos salvamos todos ou ninguém se salva”. 

São palavras graves, desconsideradas pelas grandes corporações depredadoras, porque, se tomadas a sério, deveriam trocar de modo de produção, de consumo e de descarte, coisa que não estão dispostas a fazê-lo

Há vários pontos que merecem reflexão. Para facilitar a análise, vamos separá-los em tópicos: 

(i) a oração reduzida de particípio “desconsideradas pelas grandes corporações depredadoras”, que aparece entre vírgulas, como se fosse um elemento secundário, deveria ser apresentada com verbo, como predicação de um sujeito, pois a oração seguinte (“porque…”) proporá uma explicação para justificar que a afirmação de que as corporações desconsideram as graves palavras da encíclica; 

(ii) para solucionar o problema anterior, teremos de apresentar o sujeito da oração inicial (por exemplo: As palavras são desconsideradas, porque, se tomadas a sério, …); note-se que existe uma oposição entre “serem desconsideradas” e “serem tomadas a sério”, o que requereria uma estrutura sintática capaz de organizar o raciocínio;

(iii) agora veremos, no entanto, que essa estrutura não se encaixa no que vem depois, uma vez que “tomadas a sério” se refere “às palavras graves”, mas “deveriam trocar de modo de produção” se refere às “grandes corporações depredadoras”; nesse caso, nosso raciocínio vai tomar outro caminho (por exemplo: As palavras certamente são desconsideradas pelas grandes corporações depredadoras, porque, se as tomassem a sério, deveriam trocar de modo de produção); o sujeito de “tomar a sério” é o mesmo de “deveriam trocar de modo de produção”, o que ocasiona a nova mudança; substituímos a voz passiva pela voz ativa; 

(iv) finalmente, o trecho “coisa que não estão dispostas a fazê-lo”, em que aparece a redundância (o pronome relativo “que”, o qual retoma “coisa”, exerce a função sintática de objeto direto de “fazer”, portanto a forma “-lo” (pronome de objeto direto) é desnecessária. 

Na sugestão aqui proposta, o adjetivo “graves”, atribuído a “palavras”, será usado como predicativo (atributo não inerente, mas circunstancial) em vez de ser tomado como adjunto adnominal. Para perceber a diferença, compare as duas frases a seguir: 

(i) As palavras graves foram ditas por ele. [adjunto adnominal]

(ii) As palavras ditas por ele eram graves.   [predicativo]

Na condição de predicativo, o adjetivo é mais relevante, pois é parte da predicação. Vejamos duas opções de reformulação do texto:

Na encíclica Fratelli tutti (2021) adverte: “Estamos no mesmo barco: ou nos salvamos todos ou ninguém se salva”. 

Graves, tais palavras são desconsideradas pelas grandes corporações depredadoras, porque, se as tomassem a sério, deveriam trocar de modo de produção, de consumo e de descarte, coisa que não estão dispostas a fazer

As palavras são graves e, mesmo assim, desconsideradas pelas grandes corporações depredadoras, porque, se as tomassem a sério, deveriam trocar de modo de produção, de consumo e de descarte, coisa que não estão dispostas a fazer

Publicado por Thais Nicoleti

Thaís Nicoleti é formada em português e linguística pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e licenciada pela Faculdade de Educação da mesma universidade.

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