“Ter que” e “ter de”

QUESTÃO DO LEITOR. GRAMATICAIS. Um de nossos leitores perguntou qual é a diferença entre “ter que” e “ter de”. Nos textos abaixo, extraídos de jornais, não há distinção, como se poderá perceber. Vejamos:

Uma economia com maior prosperidade, com resiliência para as questões climáticas tem que ser vista como sinônimo de desenvolvimento. 

Sinceramente, eu jamais iria imaginar que em pleno século 21 o Brasil voltaria ao Mapa da Fome. Num país onde tudo o que se planta dá, 33% da população passa fome e 106 milhões de pessoas têm de pular as refeições.

É bom que se diga logo de saída que, hoje, as duas construções são consideradas corretas e equivalentes quando usadas para exprimir obrigação. É a segunda, no entanto, que é recomendável à luz da tradição (ter de fazer algo, ter de estudar muito, ter de pegar os filhos na escola etc.).

O uso original de “ter que” aparece em construções nas quais o “que” é um pronome relativo. Pode o pronome ter um antecedente, como ocorre em “tenho muito que fazer” (muito = muita coisa) ou mesmo aparecer sem antecedente, como vemos em “hoje não tenho que fazer” (que = coisa que), cujo sentido é o mesmo de “hoje não tenho nada a fazer” ou “hoje não tenho o que fazer”. Note-se que o “o” (com valor de “aquilo”, ou seja, como pronome demonstrativo) se incorporou à construção, mas seu emprego não é necessário.

No romance Os Maias, de Eça de Queirós, lemos a seguinte passagem:

Quando não tinha que escrever, estirava-se no sofá, com um livro aberto, os olhos no ponteiro do relógio.

A construção “não tinha que escrever” nada tem que ver com a ideia de obrigação. Quer o narrador dizer que o personagem, quando não tinha alguma coisa que escrever nas cartas, estirava-se no sofá. A passagem imediatamente anterior a essa, que ajuda a compreender o seu sentido, é esta:

Mas ordinariamente, quando respondia, falava só ao Ega dos Olivais, dos seus passeios com Maria, das conversas dela, do encanto dela, da superioridade dela… Ao avô não achava que dizer; nas dez linhas que lhe destinava, descrevia o calor, recomendava-lhe que não se fatigasse, mandava saudades para os hóspedes, e dava-lhe recados do Manoelzinho – que ele nunca via.

Veja-se igualmente, em “não achava que dizer”, o uso do pronome relativo (“que”) sem antecedente, que equivale a “coisa que”. Temos, em Machado de Assis, no romance Quincas Borba, caso semelhante:

Regulados os preliminares para a liquidação da herança, Rubião tratou de vir ao Rio de Janeiro, onde se fixaria, logo que tudo tivesse acabado. Havia que fazer em ambas as cidades; mas as coisas prometiam correr depressa.

O narrador explica que havia (coisas) que fazer tanto em Barbacena como no Rio de Janeiro. Na literatura, como se vê, é bastante clara a distinção entre “ter que” e “ter de”. Ignorá-la pode levar à compreensão equivocada daquilo que o escritor está dizendo.

Não vamos aqui afirmar que está errado usar “ter que” para exprimir obrigação, já que essa estrutura assim se consolidou, mas é fato que, nas locuções verbais, em geral, aparecem preposições a ligar dois verbos, não a partícula “que” (hei de vencer, pôs-se a fazer, acabou de fazer etc.).

Assim, àqueles que gostam de cultivar o idioma recomenda-se observar a distinção, usando “ter de” no sentido de obrigação e “ter que” no sentido de “ter coisa que”.

Publicado por Thais Nicoleti

Thaís Nicoleti é formada em português e linguística pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e licenciada pela Faculdade de Educação da mesma universidade.

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