GRAMATICAIS. A imprensa brasileira tem o hábito de chamar todo o mundo pelo sobrenome, principalmente da segunda menção em diante. Do lado de fora das redações, esse hábito, provavelmente mimetizado dos jornais americanos, por vezes é percebido com alguma estranheza. Um título como “Beltrão e Severo abrirão exposição de fotos”, por exemplo, refere-se às atrizes Andréia Beltrão e a Marieta Severo. Estranho, não?
Esse não é o tema principal de hoje, mas foi suscitado pelo fragmento selecionado para nossa análise. Vejamos:
Melhem foi demitido da emissora após receber denúncias de assédio sexual envolvendo Calabresa e outras mulheres do canal. A humorista também o acusou de ter prejudicado sua carreira e a impedido de estrelar outros dois programas da Globo. Ele nega.
Ainda que estilo, como gosto, não se discuta, “Calabresa” nem mesmo é o sobrenome da atriz envolvida em um caso de assédio sexual. O nome artístico da comediante é que é “Dani Calabresa”, de sorte que o uso formal e quase pomposo de “Calabresa” como se fosse seu sobrenome parece inapropriado. Feita essa observação, que retomaremos no final, vamos ao nosso tema principal, que é a colocação do pronome átono.
O trecho traz uma sequência de dois verbos no infinitivo pessoal composto, ou seja, aparecem sob a forma de verbo auxiliar “ter” ou “haver” no infinitivo seguido de particípio. Em certas condições, é perfeitamente possível suprimir o verbo auxiliar do segundo verbo (e terceiro ou quarto, se houver). Por exemplo:
Foi acusado de ter gritado com o professor, ofendido os colegas e tratado mal os funcionários da escola.
Certamente não haveria necessidade de repetir a forma “ter” (ter ofendido, ter tratado mal), que ficou subentendida na sequência. No trecho em análise, no entanto, a supressão do auxiliar não seria possível, pois a ele se prenderia o pronome átono “a”, que acabou solto, como se estivesse ligado ao particípio “impedido”.
Não se diz “ter a impedido”, certo? Por quê? O motivo é que esse pronome átono deve estar preso ao verbo auxiliar (ênclise). Sendo vocálico (o, a, os, as) e estando depois da terminação “-r”, de infinitivo, teremos uma construção em que a desinência “-r” desaparece e uma letra “l” é acrescida ao pronome (no caso, “tê-la impedido”). Para corrigir o trecho, portanto, devemos repetir o auxiliar. Veja:
Melhem foi demitido da Globo após receber denúncias de assédio sexual que envolviam a atriz Dani Calabresa e outras mulheres que trabalhavam com ele. A humorista também o acusou de ter prejudicado sua carreira e de tê-la impedido de estrelar outros dois programas da emissora. Ele nega.
Na sugestão acima, manteve-se o nome artístico da atriz, pelo qual é conhecida (embora fosse possível usar seu nome verdadeiro seguido de “conhecida como Dani Calabresa”). A colocação pronominal foi ajustada, o que tornou necessária a repetição do auxiliar “ter” (“tê-la impedido”).
Finalmente, o leitor atento deve ter percebido na reformulação do texto uma alteração na posição dos termos “Globo” e “emissora” e a supressão de “canal”. Os três termos representam uma mesma referência, sendo “Globo” o mais específico por ser um nome próprio. É por ser mais específico que deve aparecer primeiro, de tal modo que “emissora”, no contexto apresentado, a ele se refira. Quanto à supressão de “canal”, esta se deve ao efeito de duplicação que produzia no período. Vejamos novamente:
Melhem foi demitido da emissora após receber denúncias de assédio sexual envolvendo Calabresa e outras mulheres do canal.
Nota-se a artificialidade da construção, em que o redator usa dois termos sinônimos (embora a sinonímia seja imperfeita) para um mesmo referente dentro do mesmo período. Por estarem dentro do mesmo período, “emissora” e “canal” sugerem ter referentes distintos. Só compreendemos o que se pretende dizer porque já conhecemos a história!
Como ensina o professor Evanildo Bechara, escrever com elegância é usar todos os recursos de que a língua dispõe. Estudar esses recursos é o propósito deste espaço.