Crase: errar por quê?

GRAMATICAIS. Não vamos mentir nem tapar o sol com a peneira. Muita gente bem escolarizada comete erros de grafia quando o assunto é a crase. Por que será? Não tentaremos adivinhar os motivos mais recônditos, mas vamos partir da definição do fenômeno, que é o mais importante para compreender todos aqueles casos particulares.

Bem, “crase”, para começar, não é o “acento” em si, mas um fenômeno fonético de fusão de sons vocálicos. No português atual, a fusão de dois “aa” (dois “aa” pronunciados e escritos como se fossem um só) é o único tipo de crase. Esses dois “aa” sobrepostos, portanto, é que constituem a crase, cuja grafia é “à” – o acento voltado para a esquerda chama-se “acento grave”. Pode ocorrer crase com o artigo “as”, no plural, portanto haverá a grafia “às”.

Para ocorrer crase, a primeira condição necessária é existir uma preposição “a”; a segunda é haver, na maior parte das vezes (não todas), um artigo “a”. A preposição aparece quando a regência do verbo ou do nome assim o exige (assistir a um filme, ir ao cinema, condenado ao ostracismo etc.). O artigo “a”, por sua vez, determina substantivos femininos (a peça, a escola, a prisão). Além disso, por ser um artigo definido, diferente de “uma”, que é indefinido (uma peça, uma escola, uma prisão), aparecerá nos contextos em que o substantivo nomear um elemento conhecido ou que possa ser depreendido do contexto (assistir à peça/ assistir a uma peça).

Com isso em mente, vamos observar dois fragmentos, extraídos cada um de uma publicação, que trazem problemas parecidos. Em ambos, houve o emprego abusivo do acento indicador de crase. Isso quer dizer que o redator sinalizou a crase onde ela não acontceu de fato. Vejamos:

  • O personagem de Dumont também atua diretamente no núcleo da protagonista Zoé, interpretada por Regina Casé, aliciando miseráveis na rua para enviar à uma fazenda de reprodução humana.
  • Ele acredita que, embora esse movimento seja válido, “não deveria ser um dever e sim uma opção”. “Prescrever usos linguísticos, sejam excludentes ou inclusivos, é sempre algo estranho à ciência”. Até porque, diz Schwindt, são poucas palavras, menos de 5%, sujeitas à essa modificação.

Nos dois casos acima, existe a preposição “a” (enviar a/ sujeitas a), mas inexiste o artigo definido feminino “a”. Vejamos por que seria impossível usar esse tipo de artigo nessas posições.

No primeiro trecho, “uma” é um artigo indefinido: ou dizemos “a fazenda” (artigo definido), ou dizemos “uma fazenda” (artigo indefinido). O “a” que antecede o artigo indefinido “uma” só pode ser uma preposição (enviar a uma fazenda); caso tivéssemos artigo definido, aí sim, ocorreria a crase (enviar à fazenda).

Problema semelhante se dá no segundo fragmento. Não se usa artigo antes do pronome demonstrativo “essa”, pois um e outro têm a função de determinar o substantivo. Por esse motivo, podemos dizer que “a” (artigo definido) e “essa” (pronome demonstrativo) são permutáveis no mesmo contexto. Pode haver uma preposição “a” antes do demonstrativo, mas crase é impossível. Ou dizemos “essa modificação”, ou dizemos “a modificação”. O “a” que antecede o demonstrativo é apenas uma preposição (sujeitas a essa modificação). Assim:

  • aliciando miseráveis na rua para enviar a uma fazenda de reprodução humana.
  • Até porque, diz Schwindt, são poucas palavras, menos de 5%, sujeitas a essa modificação.

A maior parte dos erros de crase pode ser eliminada com a simples aplicação da definição aos casos concretos. Há situações um pouquinho mais complexas, que serão examinadas oportunamente neste espaço.

Publicado por Thais Nicoleti

Thaís Nicoleti é formada em português e linguística pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e licenciada pela Faculdade de Educação da mesma universidade.

Deixe um comentário