Um defeito de sintaxe

PARA ALÉM DA GRAMÁTICA. O tema de hoje é um defeito de construção sintática que pode produzir uma boa dose de confusão. Geralmente, quando lemos um texto na imprensa sobre um assunto que está sendo discutido, temos condições de interpretar o sentido de uma construção ambígua graças ao nosso conhecimento prévio. É como se já soubéssemos de que se trata, portanto ajudamos a construir o sentido desejado.

Quando lemos um texto mais formal, cujo sentido não esteja atrelado ao noticiário, uma construção inadequada pode fazer toda a diferença. O exemplo de hoje é um título jornalístico que, embora não seja antigo, também não é recente. Como o fato teve grande repercussão, certamente você o entenderá. Vejamos:

Após chamá-lo de “gordola”, Dino nega recursos de Monark

Dino é o ministro Flávio Dino, do STF, e Monark é um ex-youtuber que teve seus canais fechados na rede social e hoje vive fora do Brasil. Sabendo quem é quem e conhecendo o fato, não haveria dúvida: Monark, em atitude irreverente, chamou o ministro de “gordola”. O ministro processou o rapaz e negou seus recursos, certo?

Pois bem. Agora vamos ao fato gramatical. Do modo como a frase foi construída, o sujeito de “chamá-lo” (ou seja, quem chamou) é Dino. Se Dino chamou alguém de gordola, esse alguém, no contexto, poderia ser interpretado como o outro personagem (Monark). Que confusão!

Por que isso acontece? É este o momento de você usar seu conhecimento de orações subordinadas. Sim, isso mesmo. Saber que uma oração é subordinada a outra é uma informação valiosa para quem quer entender a gramática da língua. No período em análise, a oração principal é “Dino nega recursos de Monark”; a oração subordinada exerce uma função sintática em relação à principal, no caso, a função de adjunto adverbial de tempo. Observe que “Após chamá-lo de ‘gordola'” responderia a uma pergunta de tempo. Assim: quando Dino nega recursos? Ele nega recursos após determinado fato.

Agora que você recordou a relação entre oração principal e oração subordinada (esta exerce uma função da outra), vai a dica de ouro: quando a oração subordinada antecede a principal (exatamente como ocorre no período em questão) e seu verbo não tem sujeito explícito, automaticamente entendemos que esse sujeito (elíptico ou oculto) é o mesmo da oração principal, que foi estilisticamente omitido. Isso é da natureza da língua portuguesa. É assim que funciona e é assim que chega a quem ouve.

Pensando nessa estrutura, uma correção possível do período, mantendo intacta a oração principal, seria esta:

Após ser chamado de “gordola”, Dino nega recursos de Monark

Nessa construção, Dino é sujeito de ambas as orações, mas, como o verbo está na voz passiva, Dino recebeu o tratamento irreverente. Essa formulação ainda precisaria de contexto para ajudar na sua compreensão, pois ela omite que quem chamou Dino de “gordola” foi Monark. Conseguimos resolver isso?

Após ser chamado de “gordola” por Monark, Dino nega seus recursos

Outra solução seria voltar ao orginal e mudar a oração principal:

Após chamar Dino de “gordola”, Monark tem recursos negados por ele

Você pode encontrar outras soluções. O que importa é usar seus conhecimentos para tornar a expressão o mais clara possível. A correção de defeitos de sintaxe, como esse, não é pontual, como o são correções ortográficas, por exemplo. Isso quer dizer que não existe uma só resposta para essa questão. Quanto mais recursos você tiver à disposição na memória, mais possibilidades você terá de criar construções claras, corretas e, quando necessário, criativas.

Publicado por Thais Nicoleti

Thaís Nicoleti é formada em português e linguística pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e licenciada pela Faculdade de Educação da mesma universidade.

2 comentários em “Um defeito de sintaxe

  1. Olá, professora Thais, tudo bem?

    Muito boa a postagem de 8 de julho. Gosto quando o assunto é a sintaxe e as confusões geradas pelo uso equivocado das estruturas.

    Aproveitando o contato: faz tempo que não recebo por email o Português Claro. Como não tenho o hábito de acessar redes sociais, seria possível continuar recebendo suas postagens por email (lianadoamaral@gmail.com)?

    Obrigada, abraço

    Liana

    Liana Amaral

    lianadoamaral@gmail.com

    11 997715483

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    1. Liana, o blog passou alguns meses sem atualização. Veja se recebeu este último post no email. Ao assinar o blog, você passa a receber os textos na sua caixa de entrada. Se quiser, também posso incluí-la na Newsletter Língua em Forma, em que antecipo os textos do blog. Só me avisar, ok? Um beijo pra você!

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