GRAMATICAIS. ORTOGRAFIA. É raro que, na hora de escrever, se pense muito na ortografia de uma palavra, a menos que se tenha dúvida recorrente sobre ela. Em geral, a forma da palavra é fixada na memória e passa a ser registrada automaticamente. Em alguns casos, como sabemos, a pessoa fixa a forma incorreta, mas aí são outros quinhentos. Quantas vezes temos visto nas redes sociais de gente muito bem escolarizada grafias como “excessão” (inexistente) no lugar de “exceção” e “estância” no lugar de “instância” (coisas diferentes)?
Pois bem. Os casos de hoje são, mais uma vez, extraídos de veículos da imprensa, agora selecionados por um motivo especial. Uma pessoa que escreva “excessão”, embora esteja cometendo um erro de grafia, não está infringindo, digamos, o espírito da língua ou do sistema ortográfico, apenas estará usando “ss” onde deveria ter usado “ç”. Fato diferente se dá nos casos abaixo:
“Há 15 anos sofria dos mals de Alzheimer e Parkinson. Morreu no sábado, aos 84 anos.”
“O presidente segue sem ser incomodado, e ouve ‘sims’ de seus generais para instrumentalização da Defesa, descredibilização das urnas eletrônicas e desfile de tanques enfumaçados em frente ao Planalto.”
Não é próprio da língua portuguesa o “s” depois do “l” ou depois do “m”. Falantes do português não escrveriam “barrils” de chope ou “garagems”. O plural de palavras terminadas em “l” se faz com a substituição dessa letra por “-is” ou “-eis”, a depender do caso. Oxítonas ganham a terminação “-is” (funil/ funis, barril/barris, cantil/cantis); paroxítonas pedem “-eis” (hábil/ hábeis, contábil/ contábeis, portátil/ portáteis).
Há palavras terminadas em “l” que têm mais de uma pronúncia, o que se reflete na acentuação e na flexão de número. É esse o caso de “réptil” (paroxítona) ou “reptil” (oxítona) e de “projétil” (paroxítona) ou “projetil” (oxítona), cujos plurais são, respectivamente, “répteis”, “reptis”, “projéteis” e “projetis”.
Ocorrem ainda os monossílabos “mel”, que aceita as formas “méis” e “meles”, “cal”, que admite “cais” e “cales”, e“mal”, que requer o acréscimo de “-es” (males).
Não existe no sistema ortográfico do português o plural com acréscimo de “s” a “l”, como se vê no primeiro dos trechos acima. É claro que o plural de “mau”, este sim, é feito com o acréscimo do “s” (como ocorre com “sarau” e “degrau”). “Maus” existe, mas “mals” não!
Há, porém, o caso do plural de “gol” no português do Brasil, que constitui honrosa exceção. O aportuguesamento do inglês “goal”, em Portugal, resultou na forma “golo”, cujo plural é, naturalmente, “golos”, mas, no Brasil, resultou na forma “gol”, cujo plural é… “gols”. Com a aplicação da regra, teríamos “gois” ou “goles”, formas registradas em nossos dicionários, mas rechaçadas pelo uso.
“Gols”, portanto, deve ser tratado como exceção, não como regra. O plural de “mal” é “males”, o de “sol” é “sóis” (“Porém já cinco sóis eram passados/ Que dali nos partíramos, cortando/ Os mares nunca d’outrem navegados“, nos famosos versos de Camões) e assim por diante.
Existe na gíria o uso da forma “tals”, que já chegou à imprensa, como se vê abaixo, mas totalmente fora do sistema ortográfico do português.
“A ‘bênção gay’, autorizada pelo papa Francisco, na Igreja Católica, pode até ter ares de mudança diante de princípios milenares que precisam de amadurecimento histórico e tals, mas é uma migalha de deixar a hóstia envergonhada. Aceita-se até você ter lá suas questões de gênero, mas as manifestações dela precisam ser bem regradas.”
Nesse caso, porém, é nítida a intenção do autor de reproduzir o registro oral de um grupo a que pertence. Trata-se, portanto, de uma escolha estilisticamente motivada. Em tempos de redes sociais, nas quais a escrita é livre, surgem grafias alternativas, como essa, que dão ao texto certo tom de informalidade. O importante é fazer as escolhas linguísticas conscientemente, sabendo o efeito que pretende produzir no leitor.
Quanto ao segundo fragmento, o redator, ao pluralizar o advérbio “sim”, então tomado como um substantivo, apenas acrescentou um “s” à terminação “m”. Como sabemos, palavras terminadas em “-m” fazem o plural com “-ns” (homem – homens, capim – capins, acordeom – acordeons). O plural de “não” é “nãos”, mas o de “sim” é “sins”. Assim:
Há 15 anos sofria dos males de Alzheimer e Parkinson. Morreu no sábado, aos 84 anos.
Hoje, os médicos preferem o uso do termo “doença” no lugar de “mal” (doença de Alzheimer e doença de Parkinson).
O presidente segue sem ser incomodado, e ouve“sins” de seus generais para instrumentalização da Defesa, descredibilização das urnas eletrônicas e desfile de tanques enfumaçados em frente ao Planalto.
Outros casos, mais frequentes que esses dois, mas igualmente estranhos à convenção ortográfica do português, são “transsexual” e “hiperrealista”. Será que você já viu essas grafias?
“Transexual” se escreve com apenas um “s” porque o dígrafo “ss” só ocorre entre duas vogais. A duplicação do “s” entre duas vogais serve para evitar que seja pronunciado como “z”. Compare: “asa” (som de “z”) e “assa” (som de “s”), “posa” (som de “z”) e “possa” (som de “s”). Não existe, no português, “ss” depois de consoante.
“Hiper-realista” é a grafia correta dessa palavra. Nesse caso, o problema está na própria pronúncia. Se juntarmos o prefixo terminado em “-r” (“hiper-“) ao termo iniciado em “r”, grafando “hiperrealista”, leremos a sequência “-erre-” como em “emperre”. Esse erro veio depois do Acordo Ortográfico 1990, quando muitos prefixos se juntaram sem hífen aos radicais. A regra básica do hífen, no entanto, é usá-lo para separar letras iguais (a última do prefixo e a primeira do termo subsequente). Assim: auto-ônibus, entre-eixo, anti-inflação, hiper-realista etc.
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