GRAMATICAIS. REFLEXÕES. Todos conhecemos a representação da Justiça como uma mulher de olhos vendados. A venda nos olhos simboliza a imparcialidade, significando que, para haver justiça, o julgamento deve ser feito apenas com base nos fatos e nas leis, à luz da razão, sem influência de emoções, preconceitos ou quaisquer outros interesses. Há alguns dias, o juiz Alexandre de Moraes, do STF, em uma decisão cujo texto veio a público, fez menção a essa imagem de forma inusitada. Foi, porém, por causa de um deslize gramatical que o fato chamou a atenção nas redes sociais.
Ao responder à defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro, o ministro escreveu na peça processual a seguinte frase: “A JUSTIÇA É CEGA MAIS NÃO É TOLA!!!!!”, exatamente assim, com letras maiúsculas, pontos de exclamação e “mais” no lugar de “mas”. A leitura do documento revela vários outros erros gramaticais (de crase, concordância, pontuação etc.), que nos eximimos de comentar agora, mas aos quais voltaremos.
Corrigida, a frase que Moraes diz repetir com certa frequência é esta: “A Justiça é cega, mas não é tola”. A conjunção “mas”, que introduz ideia de oposição, vem depois de uma vírgula e não se confunde com a palavra “mais”, que pode ser um pronome indefinido (“mais dinheiro”) ou um advérbio de intensidade (“mais tarde”). Quem, porventura, tenha essa dúvida pode aproveitar a repercussão do caso para memorizar as grafias corretas.
De resto, a frase chama a atenção por tomar a cegueira da Justiça como uma falha ou uma deficiência, não como uma escolha e, a bem da verdade, como uma virtude, que é o significado simbólico da imagem. Ao dizer “cega, mas não tola”, ele pressupõe que a “cegueira” implique, supostamente, algum grau de ingenuidade. Esse é o sentido metafórico de “cego”, por exemplo, no dito popular “o amor é cego”, em que a cegueira é a incapacidade de enxergar os defeitos do outro.
Para entender a ideia de pressuposto, estudada pela pragmática, vejamos outros exemplos. Ao dizermos que alguém deixou de fumar, estamos pressupondo que essa pessoa era fumante. Quem diga algo como “a moça é loira, mas é inteligente”, tem como pressuposto que moças loiras não são inteligentes, uma vez que a conjunção “mas” indica oposição ou quebra de expectativa.
Na frase “a Justiça é cega, mas não é tola”, o pressuposto é que ser cego, em alguma medida, é ser tolo, como o é o apaixonado. O ministro se valeu de um jogo de palavras, em que o adjetivo “cego” é tomado metaforicamente como incapaz de ver, para dizer que a Justiça, mesmo assim, a despeito dessa falha, está vendo todas as supostas artimanhas do réu, que estaria tentando burlar as suas determinações.
Quem está “vendo tudo”, no entanto, é ele próprio, o juiz. A Justiça é (ou deveria ser) cega mesmo, entendida a sua cegueira como uma virtude necessária ao seu propósito.