REFLEXÕES. Até pouco tempo atrás, ninguém podia criticar a dita “linguagem neutra” sem ser acusado de “fascista”, “homofóbico”, “transfóbico” ou simplesmente “bolsonarista”, o que sintetiza todos os outros termos. Até mesmo alguns professores universitários e pesquisadores da área da linguística deram um jeito de justificar a utilidade social ou a propriedade de formas como “elu” ou “todes”. No senso comum, a desbotada explicação de que a língua muda (muda mesmo, é claro) servia para explicar o “fenômeno”. Foi grande, portanto, a minha surpresa ao ver uma articulista, sempre muito antenada com as tendências da opinião do jornal em que escreve, defender a decisão do presidente Lula de proibir esse tipo de linguagem em documentos oficiais.
É claro que a nossa amiga fez interessantes malabarismos para não ofender a população “não binária”, que, penso eu, seja aquela a quem se destinaria uma linguagem que abolisse a marcação dos gêneros masculino e feminino. No artigo, ela opôs uma suposta sofisticação da linguagem neutra ao “básico”, que seria a língua portuguesa tal qual a conhecemos. Diz ela: “O Brasil tem problemas reais de alfabetização. Três em cada dez brasileiros adultos são analfabetos funcionais; gente que até lê, mas tem dificuldade para compreender um texto simples e usar a informação na vida prática. Para essa maioria, não faz sentido o Estado sofisticar a comunicação”.
Tudo certo. A articulista se saiu bem, tratando a linguagem neutra como algo superior, o suprassumo da sofisticação, que, por isso mesmo, não estaria ao alcance de nossa pobre população semialfabetizada, a quem restaria contentar-se com a boa e velha língua portuguesa de dois gêneros. Está certo que essa população humilde à qual ela se refere não lê o jornal onde ela escreve, portanto dessa gente ela pode falar com distanciamento, sem fazer média. Até aí, tudo dentro da expectativa.
A levar a sério os argumentos da articulista, porém, claro fica que “linguagem neutra” não faz parte da agenda da população como um todo, já que a maioria nem sequer entende o que seja isso, muito menos o seu propósito. Sendo assim, cabe perguntar se, entre essas pessoas pouco letradas, não há “não binários” sedentos de representatividade gramatical. Como a própria argumentação deixa explícito, “esse tipo de pauta não dá votos”. Por que será? A pergunta é retórica.
Juntando uma coisa com outra coisa, a articulista deixa claro o que, embora óbvio, era tabu: “linguagem neutra” não é uma mudança natural da língua, impulsionada pelo uso e pelas tensões linguísticas e extralinguísticas. É, no máximo, uma manifestação estética de um grupo – e como tal totalmente válida. Vamos lembrar que a poesia futurista, no começo do século XX, aboliu a pontuação como forma de representar a velocidade da vida moderna. Ninguém pleiteou, porém, que a pontuação fosse abolida dos textos escritos de modo geral ou, menos ainda, que as pessoas passassem a falar sem pausas.
A diferença entre os futuristas e os ativistas da linguagem neutra, quanto a esse aspecto, é que os primeiros eram, de fato, artistas e, conscientemente, usavam a linguagem como recurso estético, enquanto os últimos se reivindicam como lideranças de um movimento social, cuja ascensão se daria pela transformação da língua segundo parâmetros criados não se sabe exatamente por quem. Seu modus operandi é forçar uma espécie de conversão, ou seja, adotar essas idiossincrasias linguísticas seria uma forma de adesão ao movimento e, ato contínuo, recusar-se a adotá-las seria posicionar-se contrariamente à inclusão social desse grupo. Embora critiquem o binarismo de gênero da língua, seu raciocínio é binário e não admite nuances. E é nesse ponto que criam cisão.
Por mais que se angarie simpatia pela causa LGBTQIA+ entre a população, é antinatural mudar as categorias gramaticais da língua. Estamos diante de um bem coletivo, cujo funcionamento depende do acordo tácito do conjunto dos falantes e, por menos que se goste, daquilo que se aprende com as gerações passadas. Criar palavras é simples e corriqueiro, é sempre algo que se pode absorver rapidamente, mas não se mudam categorias fixas. Um exemplo ajuda a entender: criam-se substantivos, adjetivos, verbos, advérbios, mas não se criam preposições e conjunções, pois estas pertencem a um grupo fechado. O mesmo vale para as categorias de gênero e número e para as desinências verbais.
Mudanças radicais, quando ocorrem, levam ao desaparecimento de uma língua e ao surgimento de outras, como ocorreu com o latim, que deu origem ao português e a outras línguas. O latim sobrevive como língua oficial do Vaticano e continua a ser estudado por permitir o acesso a obras clássicas e a documentos históricos, mas deixou de ser uma língua funcional.
O fato é que não há como obrigar a população a adotar um dialeto artificial. Mutatis mutandis, é como se o esperanto fosse imposto à população mundial no lugar das línguas naturais. O esperanto ganhou considerável adesão, mas seu objetivo de facilitar a comunicação entre os povos parece se cumprir com o uso extensivo do inglês. A solução para o problema da comunicação interpovos veio “naturalmente” da expansão do inglês, que, não por acaso, é a língua dos Estados Unidos da América, a potência imperialista mais influente do planeta.
A linguagem neutra tem um objetivo “mais ambicioso”, pois no seu horizonte está a abolição da distinção de gêneros entre seres humanos, que são biologicamente distintos, o que é um dado concreto. É certo que poderíamos, quem sabe, evoluir para uma percepção hipercultural da realidade, na qual nossa natureza biológica se anulasse – e, num exercício de imaginação, deixariam de existir homens e mulheres, passando o mundo a ser habitado apenas por pessoas sem distinção sexual. A realidade teria de mudar antes da linguagem – não o contrário, como parecem querer os ativistas.
Caso essa drástica transformação de percepção ocorresse, criando uma nova realidade sensível, na qual não veríamos mais homens e mulheres, o mais provável é que o gênero feminino, que é a forma marcada, desaparecesse, ficando o masculino como forma única, não marcada, que deixaria de ser percebido como “masculino”. Nem por hipótese surgiria essa língua inventada pelos grupos ativistas. A língua muda sim, a língua se transforma, mas a partir do que ela é, de seus elementos característicos, não da simples imaginação de alguém. E isso acontece porque a língua não pertence a um ou outro grupo, mas sim a todos os falantes ao mesmo tempo.
No português, o gênero dos substantivos comuns é arbitrário (a cadeira, o armário); o que foi o gênero neutro no latim se fundiu com o masculino por semelhança formal, num processo de simplificação. É fantasiosa a ideia de que a língua seja “machista” por usar o masculino para se referir a grupos mistos. Aliás, nos anos 1980 e 1990, essa história de língua machista era uma piada que professores de cursinho usavam para animar as aulas dadas a grandes plateias. Era sempre uma brincadeira que rendia risadas e ajudava a memorizar regras de concordância, além de tornar menos áridas as aulas de gramática.
Em suma, o único problema da “linguagem neutra” é reivindicar adesão por conversão à causa. Não vai acontecer, porque a língua é um legado de nossos antepassados, que vamos moldando às nossas necessidades, mas sem destruir o que veio antes. É esse, aliás, o sentido da “tradição”, aquilo que se passa ao outro – e que mantém o vínculo histórico com nossas raízes, criando nossa identidade cultural. Não aderir à “linguagem neutra” não significa não reconhecer a legitimidade das questões caras à população LGBTQIA+. É que não dá mesmo para fazer isso.
Todo o mundo sabe disso, inclusive a turma que dá seu bom-dia a “todos, todas e todes” e depois continua falando normalmente, no sistema bigênero do português. Alguns dão a mesma desculpa que a nossa colunista deu no início de seu artigo, ao dizer que ela confunde até a grafia de “exceção”, às vezes escrevendo a palavra com dois “ss”, e que – veja só a modéstia! – tem dificuldade para aprender essa linguagem tão sofisticada.
É, aliás, a nossa insuspeita articulista quem diz que “quem leva essa pauta a sério sabe que a resposta está em políticas públicas, não em malabarismo gramatical”. E continua: “Enfrentar a violência contra esses grupos passa por protocolos de acolhimento, formação continuada de professores para lidar com diversidade em sala de aula, campanhas de combate à discriminação e políticas de emprego. Não é trocar vogais no Diário Oficial nem na comunicação interna das empresas”.
As palavras são dela, não da professora de português – e ela assegura que defende a agenda dos LGBTQIA+, seus amigos (ou, dependendo da circunstância, “amigues”). Em outros tempos, talvez fosse até “cancelada” por causa de colocações como essas, que obviamente não têm nada de mais, mas, como todos os que se atrevem a criticar os métodos do ativismo identitário, ela se cerca de estratagemas argumentativos para dizer da linguagem neutra que, sim, é a favor…, mas que, é claro, é contra.
Sabemos também que, embora diga apoiar a decisão do presidente Lula (“Lule está certe“, diz ela em “neutrês”), a articulista está a léguas de distância da possibilidade de apoiar politicamente Lula. A valentia no enfrentamento, ainda que cauteloso, da linguagem neutra parece ter respaldo em outros setores (poderosos) da sociedade. Que seja. Seu mérito é abrir espaço para uma discussão mais racional sobre o problema, sem interdições de cunho político-moral.