O trivium: gramática, lógica e retórica

BIBLIOTECA. A plataforma de ensino Kope acaba de lançar o Trivium: Curso de Introdução ao Conhecimento. A retomada do estudo das três artes liberais (a gramática, a lógica e a retórica), à maneira do que se fazia no período medieval, parte da ideia de que esse conjunto de conhecimentos constitui o alicerce imprescindível à construção do saber como um todo.

Participar do projeto, sob a coordenação do professor Alysson Mascaro, da Faculdade de Direito da USP, foi um desafio que compartilhei com ele e com o professor João Quartim de Moraes, da Faculdade de Filosofia da Unicamp. A mim coube elaborar um curso de gramática, ao professor João Quartim, um curso de lógica e ao nosso coordenador, professor Alysson Mascaro, um curso de retórica. Como se poderá constatar, as três disciplinas – ou artes – estão interligadas e, juntas, são essenciais para a elaboração consistente e a comunicação eficaz do pensamento.

Naturalmente, trouxemos o trivium para o século XXI, incorporando em cada disciplina o conhecimento acumulado até os nossos dias. Cada professor organizou um conjunto de dez aulas de trinta minutos, um total de quinze horas de curso.

O curso de Gramática que elaborei dentro desse projeto constitui um panorama da gramática, desde o seu surgimento, na Grécia, até questões contemporâneas ligadas à língua portuguesa. Para recuperar a origem dessa disciplina, foi preciso buscar os antigos gregos, entre os quais se encontra a base filosófica da reflexão sobre a língua.

Ainda que a linguagem humana tenha sido assunto da filosofia desde os primórdios desse campo do pensamento, como se vê em Platão e, mais tarde, em Aristóteles, foi a necessidade prática de editar os textos clássicos que deu lugar à sistematização do conhecimento gramatical propriamente dito. Sugiram assim as primeiras gramáticas. Esse é o tema da primeira aula, em que veremos que o gramático era uma espécie de filólogo, um estudioso e crítico dos textos literários. Daí a ligação da gramática à literatura, que perdura até os nossos dias.

Na segunda aula, mostramos a formação da língua portuguesa, que nasceu do latim vulgar, ou seja, o latim falado pelas pessoas no dia a dia, no qual ficaram impressas marcas das línguas dos povos que precederam a chegada dos romanos. Vamos ver como os fatores históricos foram determinantes para o surgimento das diversas línguas românicas.

Na terceira aula, fazemos um rápido percurso pela história das ideias linguísticas – e vamos ver o nascimento da linguística, com Ferdinand de Saussure, que daria às línguas o estatuto de objeto científico. O gramático, na origem, era um erudito; o linguista é um cientista.

Temos, na verdade, diferentes visões sobre a língua: a filosófica, que alimenta a reflexão sobre a relação entre a linguagem e o mundo material ou mesmo a relação entre a linguagem e o pensamento, a gramatical, eminentemente técnica ou prática, e a linguística, de caráter científico. Cabe ao estudioso aproveitar de cada dimensão desse vasto saber em permanente construção a sua contribuição.

Nas aulas seguintes, entramos nas questões gramaticais especificas, partindo da fonética, cuja importância primordial é intuída pela própria palavra “língua”, o principal órgão da fala, aquele que, com os demais órgãos do aparelho fonador, nos permite a comunicação oral. Fonética, morfologia e sintaxe são as três partes da gramática tradicional, que serviram de base para a divisão do assunto. Isso não significa que outras perspectivas tenham sido negligenciadas. Passamos pela semântica e pela pragmática em alguns momentos.

Retomamos Aristóteles, mostrando como as dez categorias do ser estão na base da concepção das partes do discurso, as quais, por sua vez, deram origem às classes gramaticais como ainda hoje as conhecemos. As similaridades são flagrantes, o que nos revela que a gramática tem nas suas raízes a busca da compreensão do mundo.

Finalmente, vamos tratar do surgimento e do desaparecimento de palavras e apresentar um panorama das diferenças entre o português hoje falado no Brasil, em Portugal e nos países africanos lusófonos.

O curso, que tem caráter introdutório, traz uma série de curiosidades que certamente vão despertar o interesse pelo estudo mais aprofundado da nossa língua. Venha conhecer o trivium do século XXI!

“Estão há quilômetros” ou “estão a quilômetros”?

GRAMATICAIS. DEU NA MÍDIA. A confusão entre “a” e “há” é frequente entre os redatores. O mais comum é que a preposição “a” acabe ocupando indevidamente a posição da forma verbal “há” em construções que evocam passagem de tempo, mas o fragmento selecionado hoje, como veremos a seguir, traz o verbo “haver” no lugar da preposição.

É oportuno lembrar que o tempo decorrido é expresso pelo verbo “haver” (Há dois anos, estive lá) e também pela forma de terceira pessoa do singular do verbo “fazer” (Faz dois anos que estive lá).

Ao noticiar o novo sistema eletrônico de multas de trânsito, um redator nos contou que um grande número de multas já foi emitido por agentes que estão há quilômetros de onde foram cometidas as infrações.

O verbo “haver” não se presta à expressão de distância. Nesse caso, deveria ter sido usada a preposição “a”: agentes que estão a quilômetros do local das infrações.

É importante notar que a preposição “a” pode indicar distanciamento não só no espaço como também no tempo, o que é diferente de tempo decorrido. Quando dizemos, por exemplo, “daqui a pouco”, o “a” expressa o limite de um intervalo. É por isso, aliás, que não devemos omitir a preposição em construções como “daqui a três dias”, “daqui a um mês”, que tantas vezes temos visto escritas sem ela (“daqui três dias”, “daqui um mês”).

É essa ideia de distanciamento no tempo que explica construções como A duas semanas da estreia, o ator adoeceu gravemente ou A seis meses da eleição, o candidato queria mudar de partido.  Note que, nesses dois casos, o ponto de referência (estreia, eleição) está no futuro, portanto o tempo (duas semanas, seis meses) expressa uma medida, ou seja, quanto tempo falta para o evento em questão. Nessa situação, o correto é usar a preposição “a”.

“Aqueles que formava” ou “aqueles que formavam”?

GRAMATICAIS. Essa é uma dúvida frequente entre os redatores. Trago desta vez dois fragmentos, sendo o primeiro publicado em um guia de restaurantes e o segundo em uma obra acadêmica. Vejamos:

(a) A casa […] era arejada, emoldurada por um jardim aprumado, daqueles que formava uma cerca natural ao dar a volta na esquina […].

(b) […] uma das principais controvérsias que envolve a noção de crioulo é a possibilidade de defini-la sincronicamente.

Esse tipo de construção ocasiona dúvida porque o redator hesita entre fazer o verbo concordar com a unidade e fazê-lo concordar com o grupo a que pertence a unidade em questão. 

No primeiro caso (a), o redator descreve um jardim, mas, para tanto, recorre a um conjunto de jardins que tem na imaginação. O jardim de sua descrição é um daqueles que formavam uma cerca natural, isto é, esse jardim é descrito por uma característica que compartilha com os demais (aqueles que). Sendo assim, essa característica deveria ter sido atribuída a todos os jardins (um jardim aprumado, daqueles que formavam uma cerca natural).

No segundo caso (b), a situação é bem parecida, mas nos oferece a possibilidade de avançar um pouco na discussão. Trata-se de um texto de linguística, em que se discute a noção de língua crioula (ou crioulo). Segundo o autor, há entre os estudiosos controvérsias acerca da definição dessa noção e uma delas é a possibilidade de defini-la sincronicamente (não historicamente).  Se há várias controvérsias que envolvem a noção de crioulo e ele pretende tratar de uma delas, o verbo “envolver” deve concordar com todas essas controvérsias, não apenas com aquela que ele selecionou do conjunto para discutir. Temos, portanto, o mesmo problema do trecho (a).

Há quem tente justificar o uso do singular como se fosse mera questão de ênfase ou de concordância ideológica. A meu ver, porém, essa explicação é um pouco frouxa. Como veremos a seguir, mediante algumas transformações (e apenas assim), no texto (b), o verbo poderia ser usado no singular. Vejamos de que se trata.

Imaginemos que o texto tivesse sido escrito desta maneira:

Uma das principais controvérsias da linguística, que envolve a noção de crioulo, é a possibilidade de definir sincronicamente uma variante dialetal.

Temos agora um texto um pouco diferente. O substantivo “controvérsias” deixa de ser qualificado pela oração “que envolvem a noção de crioulo”. Não se trata mais de “controvérsias que envolvem a noção de crioulo”; estamos agora diante de uma situação mais ampla: controvérsias da linguística.

Se você reparou na vírgula que foi posta antes da oração “que envolve”, saiba que esse é o detalhe que vale ouro. Com a vírgula, a oração “que envolve” passa a se referir a “uma das principais controvérsias da linguística”, com verbo naturalmente no singular. Agora, a oração “que envolve a noção de crioulo” é secundária e poderia até mesmo ser subtraída do período. Assim: Uma das principais controvérsias da linguística é a possibilidade de definir sincronicamente uma variante dialetal.

Ora, para usar o verbo no singular, muitas alterações foram feitas no original. Se mantida a construção do autor, o verbo “envolver” deve concordar com “controvérsias”, que, afinal, é o antecedente do pronome relativo “que”. Assim:

[…] uma das principais controvérsias que envolvem a noção de crioulo é a possibilidade de defini-la sincronicamente.

“Enquadrado como crime”

GRAMATICAIS. DEU NA MÍDIA. Extraído de uma matéria jornalística, o período “Ele considera problemático que a fala de Monark possa ser enquadrada como crime” apresenta uma construção sintática que se tem visto com alguma frequência, embora contenha flagrante imprecisão.  

“Enquadrar”, como se percebe com facilidade, é “pôr em quadro ou moldura”. Desse sentido inicial decorre a extensão semântica. No âmbito legal, é costume usar esse verbo ao analisar condutas em face da tipicidade legal: afinal, a fala do youtuber Monark pode ou não ser enquadrada em algum tipo penal, ou, grosso modo, existe alguma lei que descreva tal conduta e a ela atribua caráter delituoso?

O problema da construção está na regência verbal, pois a conduta enquadra-se ou não em algo, não como algo. A conduta que se enquadra em algum tipo penal é um crime. Caso substituamos “enquadrar” por “considerar”, aí sim, teremos “a fala possa ser considerada [como] um crime” – o uso de “como” não é obrigatório nesse caso, e geralmente os gramáticos recomendam a sua supressão (A fala de Monark pode ser considerada um crime?).

Em suma, ao usar “enquadrar”, pense na moldura em que uma tela se encaixa. Enquadrar-se em algo, não “como algo”. É claro que não basta substituir a preposição, pois ninguém diria que a conduta se enquadra em crime, certo? Toda a formulação deve ser alterada.   

“Uma das formas é por meio de”

GRAMATICAIS. DEU NA MÍDIA. A construção acima, volta e meia, aparece em textos da imprensa e nas redes sociais, motivo pelo qual vale uma breve reflexão sobre ela.  

Em recente reportagem de um site de notícias, na qual se afirmava ser a poesia um meio de transmitir conhecimentos científicos a pessoas de baixa escolaridade, foi usada esta frase: “Uma das formas de transpor essa barreira é por meio da poesia”.

Em trecho de uma entrevista, publicada em jornal, um economista disse isto: “A única maneira de sair antes do prazo de desinvestimento do fundo é por meio do processo de cessão de cotas no mercado secundário”.

Da internet, coletei mais dois fragmentos similares: “A forma mais eficaz de levar tecnologia é por meio de pessoas” e “Nesse contexto, pode-se considerar que a melhor forma de buscar a ética é por meio do questionamento e da livre discussão”.

A locução “por meio de”, em geral, introduz uma circunstância adverbial de modo, isto é, indica o modo como determinada ação é realizada. Por exemplo: Fulano conseguiu o que queria por meio de um ardil; Ela chegou àquela posição por meio de muito esforço. Nesses exemplos, vimos que “por meio de” introduz o modo da ação de “conseguir” e o modo da ação de “chegar”, respectivamente. Você, por certo, notou que em nenhum desses casos aparecem os substantivos forma, maneira, modo, jeito ou algum sinônimo deles, certo?

De modo bem simples, usamos uma coisa ou outra, não as duas ao mesmo tempo. Não dizemos que “o meio é por meio de”, tampouco diremos que “o modo é por meio de” ou “a forma é por meio de”. Nessas construções, não temos um verbo de ação ao qual se acrescente uma circunstância adverbial de modo.

O verbo “ser” liga um substantivo a um adjetivo (O aluno é inteligente) ou um substantivo a outro, o que é comum nas definições. Por exemplo: o heliocentrismo é um sistema cosmológico que considera ser o Sol o centro do Universo. A estrutura sintática básica dessa construção é a seguinte: o heliocentrismo (substantivo) é um sistema (substantivo).

Ora, sendo o sujeito do verbo “ser” a palavra “forma” (ou seus sinônimos), o predicativo será um adjetivo (A forma é adequada) ou um substantivo (Uma das formas de transpor essa barreira é a poesia). Substantivos podem ser substituídos por verbos no infinitivo (A única maneira de sair antes do prazo de desinvestimento do fundo é a cessão de cotas no mercado secundário ou A única maneira de sair antes do prazo de desinvestimento do fundo é ceder cotas no mercado secundário).

No caso de “A melhor forma de buscar a ética é por meio do questionamento e da livre discussão”, por exemplo, o ideal seria usar um verbo (no infinitivo) no lugar de “por meio de”. Vejamos uma opção (entre outras possíveis): A melhor forma de buscar a ética é estimular o questionamento e a livre discussão.

Essa questão, como se pode ver, envolve tanto a semântica, já que “a maneira é por meio” contém clara redundância, como a sintaxe, já que o verbo “ser” liga substantivo e adjetivo ou substantivo e termos de natureza substantiva.

Erguer se “sob” ou “sobre”?

GRAMATICAIS. Um trecho de artigo jornalístico, muito bem escrito (e até um tanto pomposo), levantou uma questão sobre o uso das preposições “sob” e “sobre”. Vejamos o fragmento que interessa à nossa discussão: “[…] o Supremo Tribunal Federal chancelou, sobre práticas antissemitas, que esse tipo de discurso de ódio é inconciliável com os padrões éticos e morais definidos na Constituição Federal e no mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o Estado democrático”.

A preposição “sobre”, como vemos, aparece corretamente empregada no sentido de “acerca de” ou “a respeito de” (acerca de ou a respeito de práticas antissemitas), mas sabemos que ela também participa de uma oposição semântica com a preposição “sob”. O par “sobre”/“sob” indica posições opostas: “sobre” quer dizer “em cima”, e “sob” quer dizer “embaixo”, certo? Nesse sentido, faz muita diferença dizer que algo está sobre a mesa ou sob a mesa, por exemplo.

A preposição “sob”, no entanto, aparece em um bom número de expressões nas quais nem sempre se percebe nitidamente a ideia de estar “embaixo” de algo.  Quando dizemos que uma pessoa está sob o jugo de outra, apontamos a sua posição inferior em uma relação de dominação, mas essa ideia pode não estar tão clara quando usamos expressões como “sob nova direção”, “sob a influência”, “sob a égide de”, “sob juramento”, “sob medida”, “sob encomenda” etc.

Ainda que não seja explícito, o traço semântico de “posição inferior” está lá. Basta pensar um pouquinho. Em “sob nova direção”, está claro que o funcionamento da empresa estará submetido às determinações da nova diretoria; em “sob influência”, parece claro que quem sofre a influência de outrem está, de alguma forma, em posição inferior ou subordinada; em “sob a égide de”, temos a ideia de amparo, de estar sob a proteção de algo ou alguém; em “sob juramento”, estamos submetidos a uma regra moral e legal.

Um terno feito “sob medida” será uma peça de roupa costurada de acordo com as medidas do cliente, ou seja, o corte se submeterá a essas medidas; o mesmo vale para “sob encomenda”, ou seja, a realização de algo de acordo com o que tiver sido encomendado, em relação de subordinação ao desejo de quem fez a encomenda.

A confusão entre “sobre” e “sob”, no entanto, é mais comum do que possa parecer à primeira vista. Uma repórter, há muitos anos, abordou o cantor Caetano Veloso depois de um show em que ele foi vaiado pela plateia e soltou a pergunta: “Caetano, como se sente ao sair do palco sobre as vaias da plateia?”. Ele não teve dúvidas e lascou logo a resposta: “Você tem razão: eu saí sobre as vaias. Foi isso mesmo!”… É claro que a intenção da moça era dizer “sob as vaias”, ou seja, debaixo das vaias, mas Caetano foi rápido e mostrou que se sentia superior às vaias…

Voltemos ao nosso fragmento de hoje, selecionado por causa da passagem “os padrões éticos e morais definidos na Constituição Federal e no mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o Estado democrático”. É provável que o autor do texto tenha tomado a preposição “sob” no sentido de “de acordo com” – e poderia nesse caso argumentar que “sob medida” é o mesmo que “de acordo com certa medida”. Como vimos, mesmo no caso de “sob medida”, em que a relação de conformidade parece ser a mais imediata, existe uma ideia de sujeição embutida na preposição “sob”. Essa circunstância nos devolve à questão de hoje.

O problema está no verbo “erguer-se”, pois algo (o Estado democrático) se ergue sobre uma base ou alicerce, que, no caso, são os padrões éticos e morais. A noção de submissão ou de estar embaixo, própria da preposição “sob”, não se coaduna com o conteúdo semântico do verbo “erguer-se”.

O leitor tem a impressão de que o Estado se ergue embaixo dos padrões éticos e morais. Imaginemos um contexto um pouco diferente, no qual pretendêssemos dizer que, mesmo sob a imposição de forças contrárias, algo se ergue. Veja, por exemplo uma construção como esta: Um movimento revolucionário se erguia paulatinamente sob o regime de exceção. Claro está que o regime de exceção não é a base sobre a qual se erguia o movimento revolucionário, mas um elemento repressor que, no entanto, não impediu que o movimento surgisse. A oposição entre “sob” e “erguer-se” é intencional nesse caso. De fato, alguma coisa se ergue sob outra.

Na passagem trazida para esta reflexão, os padrões éticos e morais constituem a base sobre a qual se ergue o Estado democrático, não uma força contrária a ele. Portanto, melhor teria sido esta formulação:  “… os padrões éticos e morais definidos na Constituição Federal e no mundo contemporâneo, sobre os quais se ergue e se harmoniza o Estado democrático”.

“Apologia de” e “incitação a”

GRAMATICAIS. A palavra “apologia” definitivamente ganhou o gosto popular. Está todos os dias nos jornais e/ou nas redes sociais. Por alguma razão, no entanto, há certa insistência em alterar a sua regência original. Todos os dias, temos lido expressões como “apologia ao crime”, “apologia ao nazismo” e outras do gênero, embora também se veja a regência tradicional, que é “apologia de” alguma coisa.

Uma hipótese para tentar explicar essa alteração é que esteja havendo algum tipo de cruzamento com a palavra “incitação”, que, esta sim, rege a preposição “a”. Por vezes, ocorrem na língua cruzamentos de base semântica que levam a mudanças na regência (um termo assume a regência de um sinônimo).

Observamos, porém, que os termos “incitação” e “apologia” não são sinônimos, o que, a meu ver, concorre para que mantenhamos a regência original de cada um deles. Apologia é o elogio de alguma coisa ou mesmo a sua defesa. Alguém pode fazer, por exemplo, uma “apologia do comunismo” ou uma “apologia do cristianismo”. Temos, nesses casos, o elogio ou a defesa de um ideário. Somente isso.

A preposição “a” costuma indicar movimento em certa direção (embora tenha muitos outros sentidos), como vemos em situações como “levar alguém a fazer algo”, “incitar alguém a fazer algo”, “orientar alguém a fazer algo”, “chegar a certo ponto” etc. A incitação é um estímulo à ação.

Alguém poderia dizer que tanto o elogio como a defesa de uma ideia podem produzir um estímulo, ainda que indireto, a algum tipo de ação. Essa será uma questão filosófica ou mesmo legal, que, no entanto, é insuficiente para justificar a alteração da estrutura gramatical. A apologia de uma ideia pode constituir uma incitação à prática de crimes? Essa é a questão, em formulação gramatical correta (“apologia de” e “incitação a”). 

“Previsto para ocorrer”: sim ou não?

GRAMATICAIS. Quem tem o hábito de ler jornais certamente já encontrou a construção “previsto para” seguida de um verbo no infinitivo: o espetáculo está previsto para estrear no próximo sábado, a obra está prevista para ser entregue no fim do ano etc.

Ao que tudo indica, essa moda linguística começou quando os jornais se deram conta de que não podiam afirmar com certeza que algo seria realizado em alguma data sem que, de alguma forma, se responsabilizassem pelo cumprimento da promessa alheia.

Imaginemos que um jornal publique que um espetáculo vai estrear no próximo sábado e que o espetáculo não estreie. Em tese, bastaria noticiar o motivo do cancelamento, mas, caso tenha havido um erro de informação da assessoria ou algo do gênero, como fica o jornal? Vai parecer que apurou mal a notícia.

Diante de um fato razoavelmente prosaico, a solução era encontrar uma “fórmula” que isentasse o jornal desse tipo de responsabilidade. Digamos então que há previsão de estreia, que isso está previsto etc. Até aí, tudo bem. É perfeitamente possível dizer que a estreia do espetáculo está prevista para o próximo sábado. Não é isso, porém, o que costumamos ver na imprensa.

Em vez de dizer que “a estreia do espetáculo” está prevista, o mais comum é que se diga que “o espetáculo está previsto”. O que, de fato, está previsto, porém, não é o espetáculo em si, mas a sua estreia, o seu término ou qualquer outra ação relacionada a ele, que deveria aparecer na forma nominal (o substantivo “estreia” no lugar do verbo “estrear”, o substantivo “término” no lugar do verbo “terminar” e assim por diante). Nessa construção, típica da imprensa, a ação verbal é inserida na forma de um infinitivo preso ao particípio “previsto” por meio da preposição “para” (“previsto para estrear”, “previsto para terminar”).

O verbo “prever” rege, sim, a preposição “para”, que, no entanto, introduz um complemento de natureza temporal (previsto para amanhã, previsto para o próximo sábado). Em vez de “o espetáculo está previsto para terminar às 23 horas”, melhor me parece “o término do espetáculo está previsto para as 23 horas”, porque o sujeito da oração (o término do espetáculo) anuncia o assunto de que tratará o predicado (está previsto para as 23 horas). Muito mais simples para quem lê, além de ser mais preciso. O mesmo vale para o outro exemplo: em vez de dizer que a obra está prevista para ser entregue no fim do ano, melhor dizer que a entrega da obra está prevista para o fim do ano. Certo?

A situação parece ainda pior quando o jornalista usa o verbo “ocorrer” depois de “previsto”, como lido recentemente em reportagem sobre o bloqueio do aplicativo Telegram pelo STF: “O bloqueio da plataforma não chegou a entrar em vigor – ele estava previsto para ocorrer nesta segunda, 21”. Note que, nesse caso, o sujeito já era o substantivo abstrato “bloqueio” (ação de bloquear), portanto bastava dizer que ele estava previsto para esta segunda-feira, 21, certo?

E só mais uma coisinha: a própria ideia de “ocorrer” (ou de “acontecer”, de “sobrevir”) parece rechaçar a noção de previsão, pois está ligada àquilo que sucede sem aviso. Não é à toa que “ocorrer” é usado também no sentido de “vir à memória”, como um ato involuntário, que sobrevém (Ocorreu-lhe na hora um pensamento incômodo). “Previsto para ocorrer”, portanto, é duplamente estranho à nossa língua, tanto pela sintaxe como pela semântica.

Tempo verbal: aeronave voava ou voaria?

GRAMATICAIS. Uma recente notícia de jornal trazia um breve histórico de acidentes aéreos. Em determinado ponto, o redator afirmava o seguinte: “[…] um avião China Southern 737-300, que voava de Guangzhou a Guilin, caiu na aterrissagem […]”. Até aí, tudo bem, mas, logo em seguida, talvez aproveitando a mesma estrutura redacional, escreveu isto: “Em 1994, um Tupolev Tu-154 da China Northwest Airlines voava de Xian para Guangzhou, mas caiu logo após a decolagem”.

Será que o tempo verbal que valia para uma aeronave que caiu na aterrissagem também vale para aquela que caiu “logo após a decolagem”?  Vejamos. Daquela que caiu em momento próximo ao pouso é correto afirmar que voava de um ponto a outro, mas da aeronave que caiu assim que decolou pode-se dizer que mal chegou a iniciar o trajeto.

O que está em jogo nesse caso é o emprego dos tempos verbais. O pretérito imperfeito (“voava”), além de situar a ação no passado, dá a ela um aspecto durativo, de ação contínua que se desenrola até o momento de uma interrupção. Por exemplo: Ela tocava uma linda melodia no piano quando alguém bateu na porta. A ação contínua de tocar uma melodia é interrompida por outra ação (a de bater na porta). É por isso que a forma “voava” está corretamente empregada na primeira frase: um avião, que voava de Guangzhou a Guilin, caiu na aterrissagem. Nesse caso, a queda interrompeu o voo.

O pretérito imperfeito também é o tempo verbal usado para informar algo que se fazia com frequência em um tempo passado. Por exemplo: Naquela época, ele praticava jiu-jítsu. Como se vê, o imperfeito descreve uma ação não terminada, o que, de saída, o distingue do pretérito perfeito, que é o tempo das ações completas (ele fez, ela disse, o avião caiu etc.).

Se o avião que caiu pouco depois da decolagem não estava, de fato, voando de Xian para Guangzhou, porque, embora tenha dado início ao trajeto, a ação não chegou a se estabelecer de modo contínuo, qual é o tempo verbal adequado?

O ideal seria o emprego do futuro do pretérito, que indica uma ação que se dará no futuro a depender de alguma condição (se não caísse na decolagem, o avião voaria de uma cidade a outra). Vejamos: Em 1994, um Tupolev Tu-154 da China Northwest Airlines voaria de Xian para Guangzhou, mas caiu logo após a decolagem.

É certo que há outras formas de refazer a frase, mas aqui optei por manter a estrutura original da formulação, mostrando uma sutileza semântica relacionada aos tempos verbais. O emprego dos tempos em português é um tema vasto porque há uma série de nuances de significado embutidas em cada um deles. Voltaremos ao assunto, portanto.

O gênero de “gigante”

GRAMATICAIS. Leitores regulares de jornais certamente estão acostumados a encontrar o substantivo “gigante” na designação de uma grande empresa, em geral a mais importante ou uma das maiores de um ramo de atividades.

Alguns exemplos, extraídos de várias publicações, ilustram esse uso: “a gigante da computação em nuvem” (Amazon), “a gigante de buscas” (Google), “a gigante de tecnologia e meios de pagamento” (Mastercard), “a gigante russa de gás” (Gazprom), “a gigante do alumínio” (Rusal), “a gigante do comércio eletrônico” (Amazon), “a gigante chinesa do setor imobiliário” (Evergrande), “a gigante americana Apple”, “a gigante do streaming” (Netflix), “a gigante russa dos diamantes” (Alrosa), “a gigante petrolífera Rosneft”, “a gigante de tecnologia Meta”, “a gigante brasileira de petróleo” (Petrobras)…

A insistência no uso da construção sugere que estejamos diante de um modismo, como já o foram, em outros tempos, “a novela” ou o “fantasma” disto ou daquilo. Quem ainda se lembra da “novela da reforma da Previdência” ou do “fantasma da inflação”?

Um parêntesis: modismos e lugares-comuns são comuns nos textos da imprensa, em geral produzidos em ritmo acelerado. Embora pareçam simples falta de criatividade, são eficazes do ponto de vista da comunicação rápida exatamente por serem repetitivos e acionarem de imediato uma ideia conhecida por muita gente. Esse é um tema que deixo para outro dia. Voltemos ao “gigante”.

Quem for observador terá notado o artigo “a” que antecedeu a palavra “gigante” em todos os exemplos arrolados acima. Há também exemplos em que “gigante” é antecedido de “o”: “o gigante chinês do e-commerce” (Ali Express), “o gigante americano do streaming” (Netflix), “o gigante asiático” (China), “o gigante da entrega de comida” (iFood), “o gigante chinês das redes sociais” (TikTok) etc. Afinal, gigante é um substantivo masculino, feminino ou comum de dois gêneros?

Acertou quem respondeu “masculino”. Dizemos, corretamente, “o gigante”. Por que, então, tantas vezes o termo tem aparecido no feminino? É provável que a escolha decorra de associação à ideia de empresa (empresa gigante). O termo, quando usado como adjetivo, pode caracterizar seres masculinos ou femininos (prédio gigante/ escola gigante). Nesse sentido, é sinônimo de “gigantesco” ou “gigantesca”. O substantivo composto “roda-gigante”, por exemplo, é formado de dois elementos que, separadamente, são substantivo (roda) e adjetivo (gigante); nesse caso, o gênero do composto é dado pelo substantivo, que é feminino (uma roda-gigante).

Como substantivo, no entanto, “gigante” é masculino, portanto deve ser antecedido do artigo “o”. Embora seja pouco usado hoje, o substantivo feminino “giganta” existe. Importa notar que, quando dizemos “prédio gigante”, o substantivo “prédio” é que é determinado por artigo (o prédio gigante, um prédio gigante) e, quando dizemos “escola gigante”, o substantivo “escola” é que é determinado por artigo (a escola gigante, uma escola gigante). O mesmo vale, por exemplo, para a construção “a gigante Alcione emocionou o público”, em que o artigo feminino determina o substantivo “Alcione” e “gigante” é, naturalmente, um adjetivo.

Se for substantivo, “gigante” será masculino, portanto o gigante da tecnologia, o gigante do petróleo, o gigante do streaming etc. Os jornalistas, que estão sempre a usar o substantivo “gigante”, devem ficar atentos ao gênero do substantivo.