DÚVIDA RÁPIDA. O casal trocava correspondências ou cartas?
O casal trocava cartas. Vamos entender por quê. Convém lembrar que “correspondência”, em primeiro lugar, é o ato de “corresponder”, o que pressupõe uma relação de reciprocidade. Todos sabemos como é bom ter um amor correspondido e como é importante corresponder às expectativas que depositam em nós.
Muito bem. A correspondência, além de ser, de modo geral, o ato de corresponder, é o intercâmbio de cartas ou mensagens promovido por meio de um serviço. Nesse sentido, é correto dizer, por exemplo, que a correspondência do casal se estendeu por vários anos. Isso quer dizer que houve entre eles durante esse período uma troca de cartas.
Não se diga, portanto, “troca de correspondências”. Quem assim procede está tomando “correspondência” como se fosse um simples sinônimo de “carta”. Não é, mas é correto empregar “correspondência” como conjunto de cartas (Você pode recolher a minha correspondência durante as próximas semanas?).
De acordo com a nova medida, o petista agora terá acesso a anexos do acordo de leniência, cópia das trocas de correspondências entre integrantes da força-tarefa e outras autoridades, inclusive no exterior.
O autor do texto cometeu um pequeno equívoco, aliás, bem comum. Ele poderia ter dito que o “petista” (é ao ex-presidente Lula que o texto se refere) terá acesso à cópia da troca de mensagens ou de cartas, se for o caso. Note que “troca” deveria estar no singular, pois a palavra, em si, indica um movimento recíproco. Vejamos:
De acordo com a nova medida, o petista agora terá acesso a anexos do acordo de leniência, bem como à cópia da troca de mensagens entre integrantes da força-tarefa e outras autoridades, inclusive no exterior.
É muito comum usarmos o termo “correspondência” para nos referirmos a coletâneas de cartas trocadas por escritores ou outros artistas. É famosa entre nós a correspondência entre os escritores modernistas Mário de Andrade (1893-1945) e Manuel Bandeira (1886-1968), meio pelo qual discutiam diversas questões de literatura e da cultura da época.
CAÇA-PALAVRAS. A palavra escolhida para inaugurar a seção Caça-Palavras é “mandatário”. Embora seja muito usada na imprensa para fazer referência ao presidente da República e, algumas vezes, ao detentor do principal cargo executivo de uma unidade administrativa, seu significado é mais amplo.
Vale lembrar que mandatário é aquele que recebe mandato ou procuração para agir em nome de outrem. É por esse motivo que vereadores, deputados e senadores – não apenas o presidente, os governadores e os prefeitos –, ao serem eleitos, se tornam mandatários do povo.
No título abaixo, o termo “mandatário” aparece como sinônimo de presidente da República:
O ex-presidente argentino Carlos Menem (1989-1999), de 90 anos, voltará a se casar com a primeira esposa, Zulema Yona, de quem se divorciou em 1990, anunciou um programa de televisão argentino.
Menem, senador desde 2005, acaba de superar uma pneumonia que o deixou internado por 15 dias em junho.
A leitura do próprio texto, no entanto, revela que Menem é senador, portanto rigorosamente ainda é mandatário (tem mandato). Assim, o título da notícia carrega uma inverdade, pois Menem não é um “ex-mandatário”, conquanto seja um “ex-presidente”.
Para evitar esse tipo de impropriedade, costuma-se usar a expressão “o principal mandatário do país” para fazer referência ao presidente. É uma forma de distinguir o mais alto cargo da República e de lembrar a todos que, mesmo detendo tão alto posto, o presidente é um representante do povo e em nome deste é que exerce o poder. Foi assim que Raquel Dodge, quando era procuradora-geral da República, se referiu ao atual presidente por ocasião de sua eleição:
É responsabilidade legal do principal mandatário zelar pela Constituição, pelo livre exercício do Legislativo, do Judiciário, do Ministério Público.
No título Ex-prefeito de Ibititá nega acusações do atual mandatário da cidade, quem seria “o atual mandatário da cidade”? Certamente, o texto se refere ao prefeito atual, mas, antecedido do artigo definido “o” (“o mandatário”), o termo sugere que o prefeito seja o único a ter mandato na cidade, o que, naturalmente, não condiz com a verdade, uma vez que existem os vereadores.
Mais curioso é o uso feito no trecho abaixo, em que o “mandatário” é o príncipe Albert II de Mônaco, um membro da monarquia:
O Príncipe Albert II de Mônaco foi diagnosticado nesta quinta-feira (19) com Covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus. O chefe de estado seguirá com seu trabalho em uma parte isolada do palácio, segundo a monarquia.
Em um comunicado oficial, o principado anunciou que seu mandatário foi submetido a um teste no início da semana, e esclareceu que a sua saúde “não é motivo de preocupação”.
No mesmo veículo de comunicação, atribui-se mandatoao rei da Espanha. Vejamos o que diz o dicionário Aurélio acerca da palavra “mandato”, no sentido político:
Poder político outorgado pelo povo a um cidadão, por meio de voto, para que governe a nação, estado ou município, ou o represente nas respectivas assembleias legislativas; por extensão, período de duração de um mandato.
Reis e príncipes herdeiros, que só saem do poder em caso de morte ou de abdicação, têm reinado, não exatamente um mandato. Existem monarquias eletivas, das quais um bom exemplo está no Vaticano, onde o papa é eleito por um conclave e tem cargo vitalício. É facultado ao papa o direito de renunciar, como ocorreu com Bento XVI. O período em que esteve no mais alto posto da hierarquia foi o seu papado, não o seu mandato.
Pode dar-se o caso de as pessoas associarem “mandatário” à ideia de “mandar” e daí derivarem esse uso de mandatário como chefe de Estado. Existe, sim, relação entre mandatário e mandar, mas, mesmo nesse sentido, mandatário não é aquele que manda, e sim aquele que executa as ordens (ou mandados) de um mandante (este sim é aquele que manda).
Juridicamente também se chama de mandatário ao criminoso que age sob ordens de um mandante. Veja-se o caso, até hoje não desvendado, do assassinato da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro. Há dois suspeitos presos, que, ao que tudo indica, executaram ordens de alguém, cuja identidade continua incógnita. Quem deu a ordem foi o mandante do crime.
Em sua origem latina (“mandatarĭus, a, um”), o termo indicava “aquele que é encarregado de uma comissão”. “Mandatório”, o adjetivo, este sim está relacionado a um comando ou ordem ou àquilo que é obrigatório. É assim que aparece no fragmento abaixo:
O confinamento mandatório tem se generalizado como resposta à Covid-19 e, diferentemente do voluntário, impõe custos importantes às pessoas; seu potencial para a manipulação política é assim elevado.
Há quem sugira ser “mandatório” um aportuguesamento do inglês “mandatory”, que tem esse mesmo sentido (“obrigatório”). O dicionário Houaiss indica ter o termo aparecido entre nós em 1920, mas lhe atribui a origem latina (mandatorĭus, a, um, relativo a mandado, ordem, comissão). O que se pode dizer é que o termo, sim, é de origem latina, como o são muitas das palavras do inglês. Como a datação no português é relativamente recente (“mandatário” é de 1716, segundo a mesma fonte), o termo “mandatório” pode ter chegado à nossa língua pelo inglês. Importa não confundir as duas coisas: mandatário e mandatório têm significados diferentes.
“Mandar”, por sua vez, não significa apenas “dar ordens”. Um dos sentidos desse verbo é o de enviar (mandar flores, mandar presentes, mandar recados). Hoje vou deixar aqui o áudio de uma canção muito conhecida de um certo “rei” que gosta de “mandar flores”, feito um amante à moda antiga.
GRAMATICAIS. Há certas palavras que frequentemente andam juntas e acabam sendo percebidas como expressões fixas, embora não o sejam. Hoje vamos falar aqui de dois casos muito parecidos: “pedir emprestado” e “deixar claro”.
Como se vê, em ambos, temos um verbo (pedir, deixar) e um adjetivo (emprestado, claro). O adjetivo em português concorda em gênero e número com o substantivo a que se refere (dinheiro emprestado, joia emprestada; objetivo claro, intenções claras), portanto as sequências “pedir emprestado” e “deixar claro” referem-se a substantivos, os quais, por sua vez, determinarão a concordância dos adjetivos. Logo é preciso observar o restante da frase para saber como se comportarão esses adjetivos.
Flávio Bolsonaro, então deputado estadual, comprou em 2008 várias salas num centro comercial do Rio por R$ 86,7 mil em dinheiro vivo, que pediu emprestado ao pai, a um irmão e a um assessor do pai, enfiou numa sacola e levou ao caixa do banco.
Segundo o texto, a pessoa em questão pediu um empréstimo de R$ 86,7 mil ao pai, a um irmão e a um assessor do pai. Note que o adjetivo “emprestado” deveria estar no plural, concordando com os oitenta e seis mil e setecentos reais (R$ 86,7 mil em dinheiro vivo, que pediu emprestados). Tivesse pedido apenas R$ 1, aí sim, o adjetivo ficaria no singular (por exemplo, imaginemos uma frase como esta: Flávio disse que nunca pediu emprestado sequer um real ao pai).
Se o objeto do empréstimo fossem joias, teríamos, por exemplo, isto: A moça pediu emprestadas as joias da amiga. Como vemos, o adjetivo “emprestado” concorda com a coisa emprestada.
O mesmo vale para “deixar claro”: Convém deixar claros os seus objetivos; É preciso deixar claras as suas intenções. O adjetivo “claro” concorda com o termo a que se refere.
É muito comum que o complemento do verbo “deixar” seja uma oração inteira (geralmente iniciada pela conjunção “que”). Nesse caso, “claro” fica mesmo no masculino singular, ou seja, na forma neutra (não marcada, sem flexão), concordando com a oração como um todo (É bom deixar claroque não estamos brincando).
Pode acontecer de a oração não ser iniciada pela conjunção “que”, mas o que importa saber é que o adjetivo permanece no masculino singular quando se refere a uma oração inteira. Assim, podemos dizer isto: É importante deixar claroquais informações devem estar na primeira página do texto. O pronome “quais” introduz a oração que completa o verbo “deixar” (deixar isto claro; isto = oração).
Para escrever corretamente, é importante perceber a estrutura da frase. Compare estes dois períodos: (a) É necessário deixar claro quais são as suas intenções; (b) É necessário deixar claras as suas intenções. Em (a), “quais são as suas intenções” é uma oração (portanto “claro” fica no masculino singular); em (b), “intenções” é um substantivo, com o qual o adjetivo concorda em gênero e número (“claras”).
Agora você já sabe como se faz a concordância nesses casos. Na canção “Samba da Utopia”, composta por Jonathan Silva, porém, temos os seguintes versos iniciais: “Se o mundo ficar pesado/ Eu vou pedir emprestado/ A palavra poesia”. A concordância correta seria “eu vou pedir emprestada a palavra poesia”, mas o autor aparentemente preferiu marcar a rima “ficar pesado”/ “pedir emprestado”, lançando mão daquilo que se convencionou chamar de “licença poética”. Deixo aqui o link da interpretação da cantora Ceumar. Preste atenção a essa bela letra, muito atual nestes tempos:
Samba da Utopia – Jonathan Silva
Se o mundo ficar pesado/ Eu vou pedir emprestado/ A palavra poesia//
Se o mundo emburrecer/ Eu vou rezar pra chover/ Palavra sabedoria//
Se o mundo andar pra trás/ Vou escrever num cartaz/ A palavra rebeldia//
Se a gente desanimar/ Eu vou colher no pomar/ A palavra teimosia//
Se acontecer afinal/ De entrar em nosso quintal/ A palavra tirania//
Pegue o tambor e o ganzá/ Vamos pra rua gritar/ A palavra utopia.
DEU NA MÍDIA | GRAMATICAIS. Foi notícia recentemente o modo como a administração de um conhecido hipermercado lidou com a morte repentina de uma pessoa nas suas dependências. Abriram-se guarda-sóis sobre o corpo, na tentativa de ocultá-lo dos clientes que faziam compras.
Muito bem. O assunto veio parar aqui porque os jornalistas hesitaram na hora de fazer o plural de “guarda-sol” no título “Após morte de representante de vendas, hipermercado cobre corpo com guarda-sóis e continua aberto”. “Guarda-sóis” ou “guardas-sóis”?
Grosso modo, na hora de pluralizar um substantivo composto, cada elemento deve ser analisado separadamente. O termo que admite flexão varia, o que não admite não varia. Veja o caso de dois nomes de flores: “amor-perfeito” e “sempre-viva”. O plural de “amor-perfeito” é “amores-perfeitos” (tanto “amor” quanto “perfeito” admitem a flexão), mas o plural de “sempre-viva” é “sempre-vivas” (“sempre”, como advérbio, não admite flexão).
Há casos em que, sendo o composto formado por dois substantivos, só o primeiro varia. Isso ocorre, em geral, quando o segundo especifica o primeiro ou a ele atribui finalidade (salário-família/ salários-família).
Os termos iniciados por “guarda” oferecem dúvida porque essa palavra pode ser uma forma verbal (invariável quanto a plural) ou um substantivo (variável: um guarda, dois guardas). No caso de “guarda-sol”, o que temos é a forma verbal (aquilo que guarda, que protege, do sol), portanto o plural é “guarda-sóis”. Um termo como “guarda-noturno” faria o plural “guardas-noturnos”, pois “guarda” é um substantivo (o indivíduo). É por isso que o plural de “guarda-roupa” é “guarda-roupas” e o de “guarda-civil” é “guardas-civis”.
Há muitos substantivos compostos cujo elemento inicial é uma forma verbal. Vale ficar atento a esses casos, pois as formas verbais não admitem a pluralização. É esse o caso de “corta-jaca” (plural “corta-jacas”), o nome de uma dança individual de movimentos rápidos dos pés, que nos remete ao maxixe “Gaúcho”, de Chiquinha Gonzaga, assim apelidado.
Existe um vídeo muito bacana em que a cantora Lysia Condé interpreta a canção. Se quiser, ouça aqui, mas não deixe de continuar a leitura depois dele. A letra da música está no final.
O Corta-Jaca, com Lysia Condé
Agora você pode estar pensando em alguns termos, como porta-retratos, porta-luvas, saca-rolhas, pega-panelas ou para-raios, que sempre têm o segundo elemento no plural. Essas palavras têm a mesma forma no singular e no plural, sendo a distinção feita pelo artigo que as antecede. Por exemplo: Você tem um saca-rolhas? Com os saca-rolhas modernos, ninguém faz força para abrir uma garrafa de vinho.
O substantivo “caça-níquel”, por sua vez, tem uma curiosidade. Seu plural é caça-níqueis, sim, mas essa forma também se usa no singular. É correto dizer, por exemplo, que havia um caça-níquel escondido nos fundos do bar, mas também seria certo dizer que haviaum caça-níqueis escondido no fundo do bar. O composto “corta-fogo”, que costuma aparecer em “porta corta-fogo”, não tem plural — como vemos, tem valor de adjetivo.
As palavras “mandachuva”, “girassol” e “paraquedas” hoje se escrevem dessa forma, sem hífen, mas seus elementos iniciais também são formas verbais (no passado, existiram as formas “manda-chuva”, “gira-sol” e “para-quedas”). Com o tempo, os falantes da língua vão deixando de perceber os elementos constitutivos das palavras, e a tendência, nesses casos, é que haja a junção dos termos. O plural de “mandachuva” é “mandachuvas”, o de “girassol” é “girassóis” e “paraquedas” tem forma única no singular e no plural (um paraquedas, dois paraquedas).
Agora a letra do “Corta-Jaca”, de Chiquinha Gonzaga:
Neste mundo de misérias/ Quem impera/ É quem é mais folgazão É quem sabe cortar jaca/ Nos requebros/ De suprema, perfeição, perfeição/
Ai, ai, como é bom dançar, ai!/ Corta-jaca assim, assim, assim/ Mexe com o pé! Ai, ai, tem feitiço tem, ai!/ Corta meu benzinho assim, assim!/
Esta dança é buliçosa/ Tão dengosa /Que todos querem dançar/ Não há ricas baronesas/ Nem marquesas/ Que não saibam requebrar, requebrar/
Este passo tem feitiço/ Tal ouriço/ Faz qualquer homem coió/ Não há velho carrancudo Nem sisudo/ Que não caia em trololó, trololó/ Quem me vir…
BÁSICO E IMPORTANTE. Hoje vou falar um pouquinho de ortografia. Essa palavra, em si, quer dizer “grafia correta”. A grafia, embora sirva para simbolizar os sons da fala, às vezes, representa sons iguais de maneiras diferentes. Isso acontece, entre outras razões, porque sons iguais podem representar ideias diferentes.
Veja-se o caso de “agente” e “a gente”. Ouvimos exatamente o mesmo som, mas, quanto ao significado e mesmo à grafia, o substantivo “agente” (uma só palavra) é bem diferente da expressão “a gente” (duas palavras), que é formada do artigo “a” seguido do substantivo “gente”.
“Agente”, termo que vem do verbo “agir”, significa “aquele ou aquela que age” (do mesmo modo que “regente” é “aquele ou aquela que rege”). Você pode ter pensado em um “agente secreto”, uma pessoa que age em segredo, um espião, ou em um “agente da polícia”, que é um membro da corporação policial. Está correto, mas sem sempre o “agente” é uma pessoa.
Uma substância que provoca oxidação é um “agente oxidante”; nas descrições de cosméticos, o termo é frequente: os “agentes antienvelhecimento” são as substâncias que agem para deter a ação do tempo (!). Importa saber que “agente” é aquilo que age. Você vai encontrar essa palavra em um sem-número de ocorrências.
A expressão “a gente” não tem nada a ver com isso. No Brasil, pelo menos no registro informal da língua, vem tomando o lugar do pronome “nós”. É muito comum mesmo alguém dizer “A gente se conhece há muitos anos” em vez de “Nós nos conhecemos há muitos anos”. É com esse sentido que “a gente” aparece nos versos da canção “Comida”, dos Titãs, composta em 1987 por Arnaldo Antunes, Sérgio Brito e Marcelo Fromer: “A gente não quer só comida/ A gente quer comida/ Diversão e arte”. Se quiser, ouça a canção (abaixo), mas não se esqueça de continuar a leitura até o fim, certo? A letra completa, que, aliás, continua atual, está no fim deste post.
É possível também que você encontre a palavra “gente” usada no sentido de povo. É assim que ela aparece, por exemplo, nos versos do Hino da Independência (“Brava gente brasileira, longe vá temor servil/ Ou ficar a pátria livre, ou morrer pelo Brasil”). Fernando Collor de Mello, quando foi presidente do país (1990-1992), usava a expressão “Minha gente” para se dirigir à população.
“Gente” também pode ser qualquer pessoa (Havia muita gente na festa; Tem gente em casa?) ou mesmo a família de alguém. Neste último sentido é que foi empregada na canção “Gente Humilde”, muito conhecida na voz de Chico Buarque, que assina com Vinicius de Moraes a letra, musicada pelo violonista Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto. Logo no primeiro verso, ouvimos: “Tem certos dias em que eu penso em minha gente“. Nos versos finais, “E eu que não creio, peço a Deus por minha gente/ É gente humilde, que vontade de chorar”, temos “gente” no sentido de familiares (“minha gente”) e no sentido, mais amplo, de pessoas (“gente humilde”).
Deixo a letra logo abaixo para você conhecer ou recordar essa composição de 1969, lançada em disco em 1970. Os aficionados da música popular brasileira vão gostar de ver o manuscrito de Vinicius, com as rasuras, no site do Instituto Antonio Carlos Jobim. Se quiser, aproveite para ouvir a música!
Gente Humilde
Tem certos dias em que eu penso em minha gente/ E sinto assim todo o meu peito se apertar/ Porque parece que acontece de repente/ Como um desejo de eu viver sem me notar//
Igual a como quando eu passo no subúrbio/ Eu muito bem, vindo de trem de algum lugar/ E aí me dá como uma inveja dessa gente/ Que vai em frente sem nem ter com quem contar//
São casas simples com cadeiras na calçada/ E na fachada escrito em cima que é um lar/ Pela varanda flores tristes e baldias/ Como a alegria que não tem onde encostar//
E aí me dá uma tristeza no meu peito/ Feito um despeito de eu não ter como lutar/ E eu, que não creio, peço a Deus por minha gente/ É gente humilde, que vontade de chorar.
Comida
Bebida é água/ Comida é pasto/ Você tem sede de quê?/ Você tem fome de quê?//
A gente não quer só comida/ A gente quer comida/ Diversão e arte/ A gente não quer só comida/ A gente quer saída/ Para qualquer parte//
A gente não quer só comida/ A gente quer bebida/ Diversão, balé/ A gente não quer só comida/ A gente quer a vida/ Como a vida quer//
Bebida é água/ Comida é pasto/ Você tem sede de quê?/ Você tem fome de quê?//
A gente não quer só comer/ A gente quer comer/ E quer fazer amor/ A gente não quer só comer/ A gente quer prazer/ Pra aliviar a dor//
A gente não quer só dinheiro/ A gente quer dinheiro/ E felicidade/ A gent não quer só dinheiro/ A gente quer inteiro/ E não pela metade//
Bebida é água/ Comida é pasto/ Você tem sede de quê? (De quê?)/ Você tem fome de quê?//
DEU NA MÍDIA. No decorrer da semana passada, mais precisamente no dia 13 de agosto, a expressão latina persona non grata estampou as páginas de jornais e sites de todo o país. A notícia era a aprovação na Câmara Legislativa do Distrito Federal de uma moção de repúdio ao agora ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, que foi declarado persona non grata.
A tradução literal dessa expressão em português é “pessoa não agradável”, mas o emprego da forma latina entre nós tem significado mais específico. Dizer que alguém é persona non grata significa explicitar que a pessoa não é bem-vinda, daí o fato de geralmente a expressão estar ligada a algum lugar ou grupo de pessoas. Por exemplo: Depois do episódio, ele se tornou persona non grata no partido; Depois da declaração racista, ela se tornou persona non grata no clube; Com sua atitude, acabou virando persona non grata na própria família.
Dessa forma, diferentemente do que se viu na maior parte dos textos da imprensa, Weintraub não recebeu um suposto “título” de persona non grata. Um título é uma honraria, uma dignidade, uma homenagem. É claro que, em sentido figurado, por ironia, se poderia dizer que alguém recebeu o “título de persona non grata”, mas não parece ter sido isso o que ocorreu no noticiário.
A moção de repúdio ao então ministro da Educação foi proposta no dia 27 de maio de 2020, alguns dias depois da divulgação da gravação da reunião ministerial de 22 de abril, aquela em que ele ofendeu os ministros do STF, os povos indígenas, a cidade de Brasília, à qual chamou de “porcaria e cancro de corrupção e privilégios”, etc. O texto da moção tratou não apenas do que disse Weintraub na reunião com o presidente e ministros do governo mas também de sua atuação à frente do ministério. O que se deu no último dia 13 foi a aprovação dessa moção, um ato de valor simbólico. Weintraub foi declarado persona non grata na capital do Brasil, sede do governo federal, mas está claro que não é impedido de entrar na cidade ou lá viver, se assim desejar.
No âmbito da diplomacia, a expressão é usada para indicar rejeição à indicação de um representante estrangeiro, que, nesse caso, não recebe o “agrément”. O termo francês, que quer dizer “consentimento”, refere-se à necessária aprovação de um Estado à nomeação de um diplomata estrangeiro que exercerá funções em seu território. Vale notar que, ao ser aprovado, o representante se torna persona grata.
Como se pode perceber, na esfera das relações internacionais, ser persona non grata tem implicações concretas. Se o candidato não for considerado persona grata, não se tornará representante oficial de outro país no território nacional.
Informalmente, qualquer um pode usar a expressão para indicar que alguém não é bem-vindo a algum lugar. No plural, no entanto, dizemos personae non gratae (o plural em latim não se faz com o “s” final, como em português). Deixo aqui o link de uma reportagem interessante sobre líderes mundiais que foram declarados personae non gratae, a qual, no entanto, como você verá, maltratou o latim no seu título.
PARA ALÉM DA GRAMÁTICA. O adjetivo “chinês” já foi muito usado no Brasil para nomear produtos sem marca, geralmente miudezas ou mesmo eletrônicos de baixo preço, dos quais não se esperava grande durabilidade – e não raro alguém dizia com ar de surpresa que o seu objeto “xing-ling” estava durando, era bom, funcionava etc., mesmo sem ostentar uma “marca”. “Xing-ling”?
Em terras brasileiras, todos sabem o que vem a ser “xing-ling” (supõe-se que assim se escreva) e é bem possível que se trate de um termo de natureza onomatopaica (imitação de voz ou ruído) por meio do qual se tente reproduzir o som dos nomes dos chineses, muitos dos quais terminados em “-ng” após a transliteração do chinês para o inglês.
Vale dizer que o “g” não é pronunciado em chinês (pense na pronúncia do inglês “long”, que se aproxima do som original). No Brasil, porém, a tendência é pronunciar todas as letras, inclusive esse “g”. “Xing-ling” seria, então, uma gozação com os nomes chineses (Chang, Wang, Fang, Ming, Yang, Wong, Tang, Huang…).
Não vou negar que circula pela internet uma versão bem engraçada de um suposto significado da junção de dois ideogramas chineses (Xing e Ling) que, juntos, significariam “zero estrela”, o que se encaixaria no conceito de produto de baixa qualidade, desde que considerada a estrela um símbolo de qualidade, o que tem sentido por aqui, mas provavelmente não na China.
Acresce-se a isso o fato de cada som poder corresponder a diferentes significados, de acordo com a entonação da pronúncia. O chinês (na verdade, o termo engloba um grupo de línguas faladas na China, das quais a mais importante é o mandarim) é uma língua tonal. Como se vê, é bem complicado arriscar uma explicação com base no suposto significado da expressão. O fato de se ter disseminado no Brasil é mais um fator a corroborar a hipótese de analogia com a sonoridade dos nomes de pessoas chinesas. Etimologia popular é uma aventura divertida, mas, mesmo quando a história é boa, o melhor é desconfiar.
Já há um bom tempo, o adjetivo “chinês” ganhou uma conotação bem diversa, não traduzível por “xing-ling”. Frequentemente associado ao substantivo “crescimento”, passou a ser usado no âmbito da economia para indicar rapidez e grande escala. Crescimento chinês é um crescimento exponencial e rápido. Diz um executivo de uma grande rede de lojas brasileira: “Todas as grandes plataformas do mundo dependem muito de escala. A minha estratégia é crescimento chinês em número de usuários, é escala”.
Ultimamente algumas pessoas têm feito uso político do adjetivo “chinês”, associando-o ao coronavírus. Por meio da expressão “vírus chinês”, atribui-se à China culpa ou responsabilidade pelo surgimento do vírus. Para evitar estigmatização de povos, regiões ou grupos, o Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus criou o termo Covid-19, acrônimo de “coronavirus disease” (doença do coronavírus) seguido da última dezena do ano do primeiro caso. O fato é que, para enfrentar o problema, a união é muito mais sensata que a discórdia.
Há algum tempo, os brasileiros usavam o adjetivo “paraguaio” para dizer que um produto era falsificado. Era a época do contrabando de toda sorte de mercadorias que levas de brasileiros faziam no país vizinho, os chamados “sacoleiros” ou muambeiros. Hoje quase não se ouve mais esse uso pejorativo do adjetivo pátrio “paraguaio”.
Os brasileiros têm o hábito de depreciar não apenas os outros como também a si próprios, invocando para tanto, em sentido depreciativo, adjetivos gentílicos de povos originários. “Tupiniquim” aparece nos mais diversos contextos, sempre que se pretende desmerecer o brasileiro, mostrando-o como ridículo ou atrasado. Um exemplo, entre muitos: “Historicamente, cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Recife passaram por processos de higienização social em suas regiões centrais —vide a Belle Époque tupiniquim que perdurou do fim no Império até a Primeira República”, extraído de um texto, aliás, bem interessante.
Acredito que muita gente não perceba quanto há de depreciativo nesse uso de “tupiniquim” ou não tenha parado para pensar nisso. Espero que nossos encontros aqui no Português Claro sirvam para motivar a reflexão acerca da nossa língua.