“Grassar” e “ser crasso”

GRAMATICAIS. No trecho destacado hoje, o adjetivo “crassa” parece estar no lugar da forma do verbo “grassar”. Vejamos.

Desinformação é, quase sempre, aquilo do qual discordo. A desinformação é um mercado selvagem de conteúdo. Mesmo em catástrofes como um terremoto ou uma enchente — como a recente no itoral norte de São Paulo—, a desinformação crassa.

Ainda que se pudesse atribuir aspecto grosseiro ou tosco à desinformação, justificando-se a construção “desinformação crassa” ou “crassa desinformação”, não parece ter sido essa a intenção do autor, pois, se assim fosse, a oração ficaria truncada, sem um verbo.  

O verbo “grassar” quer dizer “espalhar-se”, “propagar-se”, “difundir-se”, sentidos que se coadunam com aquilo que vem sendo dito no texto. O correto, portanto, ao que tudo indica, seria “a desinformação grassa”. 

O escritor opta pela sequência “aquilo do qual”, que, embora não nos pareça incorreta, não soa tão bem quanto “aquilo de que”. As formas “o qual”, “a qual”, “os quais” e “as quais” (pronomes relativos) são “obrigatórias” quando antecedidas de preposições de duas ou mais sílabas. Também costumam ser usadas para evitar ambiguidades. 

De resto, a leitura da sequência “enchente – como a recente” incomoda pelo eco. “Eco” é o nome dado na gramática a termos que inadvertidamente criam rimas no texto em prosa. Imagine uma frase como “Vicente sente dor de dente”. Em geral, os redatores evitam esse tipo de construção. 

O parágrafo em questão poderia ter sido escrito assim:

Desinformação é, quase sempre, aquilo de que discordo. A desinformação é um mercado selvagem de conteúdo. Mesmo em catástrofes como um terremoto ou uma enchente — como a última ocorrida no litoral norte de São Paulo—, a desinformação grassa.

“Esvair-se” e posição do pronome átono

GRAMATICAIS. No fragmento que analisamos hoje, um articulista falava sobre os célebres encontros “às cegas”, que, segundo ele, não estão sujeitos ao fracasso quando os envolvidos estabelecem “conexão legítima” antes do primeiro cara a cara. O que nos interessa aqui é o verbo empregado, “esvair-se”, ou seja, “dissipar-se”. Vejamos.

Conhecer e receber alguém romanticamente, sem que haja contato visual, até pode embutir um risco de fracasso, mas que, seguramente, esvaia-se muito com o nível de conexão legítima que se estabeleça antes do cara a cara.

Como está usado em oposição a “pode embutir” (presente do indicativo), “esvair” deveria estar também conjugado nesse tempo (pode embutir um risco, que se esvai). Além do tempo verbal, é preciso observar mais duas coisas: uma delas é a posição do pronome átono (“se”) e a outra é a posição do pronome relativo “que”, de “mas que”. 

Tanto o pronome relativo (“que”) como o advérbio (“seguramente”) são fatores de próclise. Mesmo estando o advérbio entre vírgulas (não obrigatórias), o “que” continua atraindo o pronome átono (“que, seguramente, se esvai” ou “que seguramente se esvai”).

O outro problema diz respeito à clareza. O pronome relativo “que” se refere a “risco de fracasso” (é o risco de fracasso que se esvai, certo?), portanto o ideal é que estivesse imediatamente depois de “risco de fracasso”. Como fazer isso e, ao mesmo tempo, usar a conjunção adversativa “mas”? Com a adversativa “mas”, de fato, é impossível, mas com as outras conjunções do mesmo tipo isso é perfeitamente viável. Veja a sugestão abaixo:

Conhecer e receber alguém romanticamente, sem que haja contato visual, até pode embutir um risco de fracasso, que, no entanto, seguramente se esvai com o nível de conexão legítima que se estabeleça antes do cara a cara.

“Sob” e “sobre”

GRAMATICAIS. O trecho abaixo, extraído do noticiário, refere-se, como se pode perceber, ao dia da posse do presidente Lula. A reportagem descrevia os ‘memes’ mais divertidos das redes sociais na ocasião, entre os quais alguns que faziam graça com a altura do senador Rodrigo Pacheco, que se destacava entre os demais. O redator, entretanto, deu uma escorregadela no português ao dizer que o senador caminhava “sob” um tapete vermelho.

Quem também não foi perdoado foi o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que recebeu os quatro na chegada ao Congresso, após o desfile. Na caminhada sob um tapete vermelho, chamou a atenção a altura do senador ao lado de Lula.

Como sabemos, “sob” quer dizer “embaixo de” e “sobre”, este sim, quer dizer “em cima de”. Difícil imaginar alguém que caminhasse embaixo de um tapete vermelho, não? Há outros empregos desse par de preposições (sob nova direção, sob medida, falar sobre um tema etc.), mas, na descrição de posição física, a distinção é muito simples. Basta não confundir uma coisa com outra. Assim:

Quem também não foi perdoado foi o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que recebeu os quatro na chegada ao Congresso, após o desfile. Na caminhada sobre um tapete vermelho, chamou a atenção a altura do senador ao lado de Lula.

“Diferir” e “embalsamamento”

GRAMATICAIS. De uma das muitas notícias relativas ao falecimento de Pelé, extraímos o texto de nossa análise de hoje. O tema específico era o processo de conservação de cadáveres conhecido como tanatopraxia. Vejamos:

A finalidade do procedimento é que o difere do embalsamento. Neto explica que ambos têm conceitos parecidos, mas a tanatopraxia não exige a retirada de todos os órgãos da pessoa morta, algo que ocorre no embalsamento. 

Em toda a reportagem, o jornalista usou o termo “embalsamento” no lugar de “embalsamamento”. Atenção: os dois termos existem e cada qual tem seu significado. “Embalsamamento” é a ação de “embalsamar”, isto é, tratar o cadáver com substâncias que o preservem da decomposição. Naturalmente, o termo vem de “bálsamo”.

“Embalsamento”, por sua vez, é a ação de transvasar o vinho para a balsa (ou dorna), sendo “balsa” um recipiente de boca larga onde se deixa fermentar o mosto (sumo de uvas frescas). “Embalsar” também pode ser o ato de formar uma balsa (agora no sentido de “jangada”) ou ainda a ação de meter-se em uma balsa (transporte flutuante). Como se vê, “embalsamento” nada tem que ver com tanatopraxia (“tanato”, em grego, quer dizer “morte”).

Quanto ao verbo “diferir”, o problema não é a grafia nem mesmo o significado, mas o regime. Embora seja um aparente sinônimo de “diferenciar”, emprega-se em construção diversa. Podemos dizer que determinado traço ou aspecto diferencia uma coisa de outra, mas não diremos que “difere uma coisa de outra”, pois “diferir” é “ser diferente”. Diremos, então, que “uma coisa difere de outra”. Percebeu a diferença? Compare as frases:

(i) Esta técnica difere da outra apenas em um aspecto. [é diferente]

(ii) Esta técnica se diferencia da outra apenas em um aspecto. [torna-se diferente]

(iii) O que diferencia uma técnica da outra é este aspecto. [torna diferente]

(iv) É este o aspecto em que uma técnica difere da outra. [é diferente]

(v) Suas ideias diferem. [são diferentes]

(vi) As assinaturas diferem muito entre si (ou uma da outra). [são muito diferentes]

Portanto, corrigido, o trecho ficaria assim:

A finalidade do procedimento é que o diferencia do embalsamamento. Neto explica que ambos têm conceitos parecidos, mas a tanatopraxia não exige a retirada de todos os órgãos da pessoa morta, algo que ocorre no embalsamamento. 

 

“Proliferar” e “postagem”

GRAMATICAIS. Hoje vamos tratar de dois temas, a regência de “proliferar” e o significado de “postagem”. Ambos foram suscitados pela leitura de uma notícia de jornal. Vejamos:

O vídeo do pastor bolsonarista André Valadão em resposta a uma inexistente intimação do tribunal foi o exemplo mais evidente, mas não o único. Postagens com o falso aviso “comentário removido pelo Tribunal Superior Eleitoral” também se proliferaram —o site Aos Fatos identificou mais de 140.

No trecho acima, o redator empregou o verbo “proliferar” como se fosse pronominal. Esse equívoco é comum e talvez se dê em razão de associação do termo a um sinônimo, o verbo “reproduzir-se”, que é reflexivo.

“Proliferar” significa originalmente “gerar prole” (Coelhos proliferam rapidamente), mas seu significado se estende para outras situações, como se observa no fragmento acima, no qual se afirma que o que proliferou foram “postagens”.

Correndo o risco de remar contra a maré, vamos observar que “postagem” é uma palavra da língua portuguesa que nomeia o ato de “postar”, ou seja, o ato de pôr uma carta, documento ou encomenda no correio. No sentido pretendido, o termo vernáculo seria “publicação”. Vamos à sugestão de correção:

O vídeo do pastor bolsonarista André Valadão em resposta a uma inexistente intimação do tribunal foi o exemplo mais evidente, mas não o único. Publicações com o falso aviso “comentário removido pelo Tribunal Superior Eleitoral” também proliferaram —o site Aos Fatos identificou mais de 140.

Concordância do verbo “faltar”

GRAMATICAIS. Embora todos saibamos que, na língua portuguesa, o verbo concorda em pessoa e número com o seu sujeito, o que, vez ou outra, acontece é não percebermos qual é o sujeito do verbo ou mesmo imaginarmos que o verbo é impessoal quando não o é. Esse tipo de situação geralmente ocorre quando o sujeito aparece depois do verbo. Isso também tem explicação, pois a ordem dos termos mais usual em português é aquela em que o sujeito está no início do período, antes do verbo.   

Vejamos um exemplo:

“O que temos são escolas conteudistas ou alternativas. Falta no mercado escolas que reúnem essas duas características e sejam acessíveis ”, disse fulano*.

O trecho foi extraído de um texto jornalístico, no qual se reproduziu a fala de um entrevistado, cujo nome optamos por omitir*. O empresário do ramo educacional, ao explicar que nicho seu negócio enfoca, incorreu num erro de concordância muito comum no português.  

No trecho em questão, “escolas” é o sujeito de “faltar”. Alguma coisa falta, certo? Aquilo que falta é o sujeito de “faltar”. Falta uma escola que reúna certas características ou faltam escolas que reúnam tais características. Convém prestar atenção ao verbo “faltar”, pois ele sempre tem sujeito e frequentemente esse sujeito não está no início do período. É muito mais comum dizermos que “faltam escolas” do que dizermos que “escolas faltam”, não é? Essa inversão é comum também nos verbos sobrar, restar e existir, entre outros. Assim: sobraram vagas, restam poucos dias, existem livros ótimos etc. Vejamos a correção:

“O que temos são escolas conteudistas ou alternativas. Faltam no mercado escolas que reúnem essas duas características e sejam acessíveis ”, disse.

Apócrifo ou anônimo?

SEMÂNTICA. Hoje vamos discutir o significado de um termo que tem aparecido na imprensa de modo impreciso. “Apócrifo” não é o mesmo que “anônimo”. Vejamos por quê. Abaixo, um fragmento extraído de uma publicação da imprensa brasileira:

A última onda de fake news tem por base um relatório apócrifo com dados que questionam o resultado da eleição. O consultor Fernando Cerimedo, do canal argentino “La Derecha Diário”, fez uma live na noite de sexta-feira (4) para apresentar o dossiê.

O fato de ser o relatório desprovido de assinatura, do nome do seu autor, não faz dele “apócrifo”. Será, antes, um texto anônimo. O termo “apócrifo”, de origem grega, que chega ao português pelo latim apocryphus, significa “oculto, secreto” e, a princípio, era atribuído a certos textos sagrados, que só podiam ser lidos por iniciados. Com o tempo, esse significado se ampliou.

O termo atualmente é usado tanto para designar obra religiosa destituída de autoridade canônica, caso dos evangelhos de São Pedro e de São Tomé, como para fazer referência a uma obra erroneamente atribuída a um autor ou a uma obra cuja autoria não se provou. No sentido figurado, tem o sentido de “falso”, “inautêntico”.

Um exemplo pode ajudar na compreensão do sentido exato do termo. Existem várias poesias atribuídas ao poeta português Luís Vaz de Camões (nascido provavelmente em 1525 e falecido em 1580) consideradas “apócrifas”, pois sua autoria não pôde ser comprovada). Também se usa o termo “apócrifo” para caracterizar um texto que se mostra diferente daquele escrito pelo autor (Aquela era uma versão apócrifa do poema).

O mais provável é que o autor do trecho acima tenha desejado informar ao leitor que o referido relatório é anônimo, ou seja, de autor que não se dá a conhecer. Assim:

A última onda de fake news tem por base um relatório anônimo com dados que questionam o resultado da eleição. O consultor Fernando Cerimedo, do canal argentino “La Derecha Diário”, fez uma live na noite de sexta-feira (4) para apresentar o dossiê.

Adjetivo anteposto e gênero gramatical de partidos políticos

GRAMATICAIS. Hoje vamos abordar dois casos de concordância nominal, um dos quais ligado à posição do adjetivo em relação à sequência de substantivos aos quais se refere e o outro ligado ao gênero gramatical de siglas e nomes de partidos políticos. Vamos ao fragmento, extraído de uma notícia de jornal:

Caso ultrapasse esses obstáculos, Tebet não deverá contar com um integrante original da terceira via, o União Brasil, que desembarcou do projeto com suas grandes verba eleitoral e capilaridade.

O adjetivo “grande”, anteposto a “verba eleitoral e capilaridade”, ainda que seja um atributo tanto de uma como de outra, deve concordar apenas com o elemento mais próximo. Se apurar os ouvidos, o escriba logo perceberá que essa construção soa mal.

Note que é a posição do adjetivo em relação à sequência de substantivos que leva a essa concordância. Lembremos uma frase como “Escolheu má hora e lugar para o encontro” – alguém imaginaria dizer “maus” hora e lugar? Nosso ouvido denunciaria a estranheza na hora!

O uso de “grandes”, no plural, mais parece um caso de ultracorreção, que é aquela situação em que, por medo de errar, o usuário da língua aplica algum princípio que lhe pareça “lógico” e “corrige” o que estava certo (é isso o que motiva construções como “haviam pessoas” ou “menas laranjas”, por exemplo, mas esse é um tema para um próximo artigo).

Voltando ao excerto escolhido hoje, bastaria ao redator dizer que o partido “desembarcou do projeto com sua grande verba eleitoral e capilaridade”. E é claro que o adjetivo “grande” se estende ao termo capilaridade. Caso não fosse esse o desejo de quem escreveu o texto, seria necessário alterar a ordem dos termos (“capilaridade e grande verba eleitoral”), de tal modo que o adjetivo ficasse circunscrito ao termo “verba”.

A segunda questão diz respeito a um uso frequente na imprensa desde que surgiu o partido político denominado “União Brasil”. Muitas vezes, vemos o uso de um artigo masculino antes desse nome (“o União Brasil”), como foi feito no fragmento transcrito. É provável que se esteja fazendo a concordância com o termo “partido”, que estaria subentendido.

Ocorre, porém, que a agremiação substituiu o termo “partido” por “união”, portanto é com este que deve concordar o artigo (a União Brasil, como a UP, União Popular). O mesmo vale para a velha Arena (Aliança Renovadora Nacional), sempre tratada no feminino. A aliança, a união, o partido, o movimento (MDB) etc., cada qual com o seu artigo. No caso de nomes como Avante ou Podemos, aí sim, subentende-se a palavra “partido” (o Avante, o Podemos). Fica a dica!  

Vai uma longa distância

PARA ALÉM DA GRAMÁTICA. Certas expressões de uso corriqueiro, por vezes, aparecem truncadas. Se na lnguagem oral isso é pouco importante, o mesmo não se pode dizer quando os truncamentos ou elipses aparecem no texto escrito. Vejamos um exemplo, extraído de um texto de jornal:

O ambiente jornalístico da empresa é controlado e, até por isso, objeto de justa crítica, mas chamar isso de censura vai uma longa distância.

É claro que nós entendemos o que quis dizer o jornalista, mas a expressão está incompleta, e a ideia surge truncada. Ao dizer que “vai uma longa distância”, é preciso indicar os seus limites. Em outras palavras, dizemos que, de um ponto a outro, vai uma longa distância. Faltou, portanto, a demarcação inicial: a distância tem como ponto de partida a ideia de que o ambiente da empresa é “controlado” – e daí ao ponto de chegada, isto é, a ideia de “chamar isso de censura”, é que “vai uma longa distância”. Assim:

O ambiente jornalístico da empresa é controlado e, até por isso, objeto de justa crítica, mas daí a chamar isso de censura vai uma longa distância.

Palavras ambíguas

SEMÂNTICA. Uma comunicação eficaz requer mais que a correção gramatical, embora desta não se possa prescindir. Há situações em que a escolha de um termo polissêmico pode causar algum ruído na comunicação. Vejamos um título jornalístico publicado recentemente:

Políticas trans enfrentam rotina de perseguição e ameaças de morte no país

É bem provável que, num primeiro momento, o leitor seja induzido a pensar que políticas públicas voltadas para pessoas “trans” enfrentem rotina de perseguição, ideia que se desfaz na leitura da segunda parte da frase, pois apenas pessoas são passíveis de sofrer ameaças de morte. De fato, “políticas”, no caso, era o feminino de “políticos”.

Como se vê, embora não se possa considerar incorreta a construção, do ponto de vista da comunicação rápida, sempre desejada pelos jornalistas, o título não era dos melhores – tanto é que logo foi alterado para o seguinte:

Trans na política enfrentam rotina de perseguição e ameaças de morte no país

Este último ficou claramente melhor, não é? Problema semelhante ocorre nos textos em que se emprega o feminino de “músico”. Vejamos esta construção hipotética:

As músicas da orquestra eram belíssimas.

Nossa tendência inicial seria pensar que o adjetivo qualifica as peças musicais, não as musicistas, certo? Em rigor, no entanto, “música” é também um feminino de “músico”, portanto só o contexto esclareceria a questão.

É claro que a língua dispõe de recursos para tornar a construção mais clara. Um deles seria o uso de “musicista” caso se pretendesse falar das mulheres e, se a intenção fosse mesmo falar das obras, o melhor seria dizer “músicas executadas pela orquestra”.