“Engrossar o quorum”

SEMÂNTICA. Antes de entrar na questão semântica, vamos tratar da grafia dessa palavra. “Quórum”, com acento, é aportuguesamento do latim “quorum” (sem acento). As duas formas de escrever estão vigentes no português, mas a latina não admite o plural em “ns”. No fragmento abaixo, recolhido do noticiário, é o emprego do termo que nos motiva a reflexão. Vejamos por quê.

Por isso, não está marcado um comício de comemoração para o domingo. Ainda assim, lideranças políticas já estão com passagens reservadas para irem a São Paulo engrossar o quórum caso a vitória já seja anunciada neste domingo.

O quórum é a quantidade mínima obrigatória de membros para que uma assembleia possa tomar decisões válidas (Não houve quorum para eleger o síndico). Por extensão de sentido, é a “quantidade necessária de pessoas” (O show foi cancelado por falta de quorum). Dessa forma, ou existe quorum, ou não existe quorum.  

Aumentar o quorum é o mesmo que aumentar o número “necessário” (O quorum para eleger o síndico aumentou de 15 para 20 moradores), mas, havendo um número inferior ao mínimo, não se diz que “o quorum estava baixo”. Diz-se, nesse caso, que não houve quorum.  Em suma, o quorum não é o número de pessoas, mas sim o número mínimo de pessoas para fazer alguma coisa. Por esse motivo, também não se diz “quorum mínimo”, que é um pleonasmo.

No texto do jornalista, a intenção foi dizer que pretendiam aumentar o número de participantes de uma eventual festa, portanto “quorum” não era a palavra ideal. É possível que o autor do texto tenha buscado um termo ligado ao universo da política para dar um tom jocoso à situação de planejar uma festa de vitória eleitoral com base na crença nas pesquisas de intenção de voto. Mesmo assim, como esse termo é bastante específico, o resultado deixou a desejar. 

“Fluido” ou “fluído”?

GRAMATICAIS. É muito comum a confusão entre o adjetivo “fluido” e o particípio passado do verbo “fluir”, que é “fluído”, com acento. Vejamos um trecho, extraído de um blog de história e filosofia, que apresenta um pequeno defeito de construção e o uso de “fluída” no lugar de “fluida”

Essa conjuntura fluída e desconexa da realidade da esquerda permite indagações tão desconexas quanto, como a de Leonardo Avritzer, que questionou “a linguagem desse questionamento e se a utilização da violência como método é a linguagem correta da disputa histórica”.

A palavra “fluido” (lê-se “flúi”) pode ser um substantivo (fluido de isqueiro, fluido de freio do automóvel, fluido corporal) ou um adjetivo (leve, suave, fluente, característica daquilo que flui). No trecho acima, a intenção era dizer “conjuntura fluida”.

A forma acentuada existe, mas tem outro uso, pois é o particípio passado do verbo “fluir” (A água tinha fluído rapidamente). É bastante comum o erro de prosódia e (pronúncia), consequentemente, de grafia da palavra “fluido”. Vamos à correção:

Essa conjuntura fluida e desconexa da realidade da esquerda permite indagações tão desconexas quanto a de Leonardo Avritzer, que questionou “a linguagem desse questionamento e se a utilização da violência como método é a linguagem correta da disputa histórica”.

Prefixos terminados em “-r”

GRAMATICAIS. Depois de consolidado o Acordo Ortográfico de 1990, têm aparecido com frequência nos textos da imprensa grafias insólitas, que sugerem alteração na pronúncia das palavras, coisa que não poderia ocorrer, pois somente a ortografia é objeto de convenção. Vejamos um exemplo recente:

Artista do Colorado (EUA) usa tecnologia que transforma frases de texto em desenhos hiperrealistas

É provável que esse erro seja decorrente do aprendizado precário das novas regras, já que, de fato, muitas palavras passaram a ser escritas com “rr” depois do Acordo. Vamos ver qual é a confusão que vem ocorrendo.

Os prefixos terminados em vogal postos antes de uma palavra iniciada por “r” pedem, de fato, um segundo “r” como consoante de ligação. Assim: auto + retrato = autorretrato, multi + religioso = multirreligioso, anti+ racista = antirracista. Essa regra ortográfica visa a preservar a pronúncia da palavra em face da supressão do hífen. Caso se mantivesse um só “r”, teríamos leitura diferente (veja-se, a propósito, a diferença de pronúncia entre “carro” e “caro”). Até aí, tudo bem, certo?

O problema aparece quando o próprio prefixo termina em “r” (hiper-, ciber-, inter-, super-). Nesses casos, se o termo posterior começar com a letra “r”, usaremos o hífen, preservando a pronúncia: hiper-realista, ciber-realidade, inter-religioso, super-rico.  Dessa forma, cada “r” é pronunciado separadamente. Vale reforçar: uma reforma ortográfica muda a grafia das palavras dentro do sistema vigente, não a sua pronúncia. Assim:

Artista do Colorado (EUA) usa tecnologia que transforma frases de texto em desenhos hiper-realistas

A imagem que ilustra esta publicação é um desenho hiper-realista de Néstor Canavarro.

Subjuntivo depois de “negar”

GRAMATICAIS. DÚVIDA RÁPIDA. Há quem diga que o modo subjuntivo está desaparecendo paulatinamente da língua portuguesa. Será? A depender do que se vê na imprensa, que é uma espécie de registro “medioculto” urbano, pode ser mesmo que seus dias estejam contados. Em todo o caso, vamos insistir mais um pouco nesse recurso da nossa língua.

Hoje trago um título jornalístico dos mais comuns (do ponto de vista gramatical):

Coreano criador de criptomoeda some após rombo de US$ 40 bilhões, mas nega que está em fuga

Observamos o uso do modo indicativo onde caberia o subjuntivo. Em rápidas palavras, o “indicativo” é o modo da certeza, enquanto o “subjuntivo” é o modo da hipótese, da conjectura, da suposição, da suspeita, da possibilidade e da negação. Por isso mesmo, é, por excelência, o modo da subordinação.

Em algumas situações, a diferença entre um modo e outro é bastante clara.  “Ele estava satisfeito” é diferente de “Talvez ele estivesse satisfeito”.  “Estava” está no modo indicativo; “estivesse” está no modo subjuntivo. Nesse caso, o advérbio “talvez” no início do período induziu o uso do subjuntivo, coisa que ocorre com outras palavras também, entre as quais verbos e nomes que sugerem a ideia de incerteza.

Assim, em vez de “suspeitar que ele desviou dinheiro dos cofres públicos”, dizemos “suspeitar que ele tenha desviado dinheiro dos cofres públicos”. No caso do verbo “negar”, é imprescindível o uso do verbo complementar no modo subjuntivo. Vejamos:

Coreano criador de criptomoeda some após rombo de US$ 40 bilhões, mas nega que esteja em fuga

“Com o que” ou “com que”?

GRAMATICAIS. Nós nos acostumamos, pelo menos no português do Brasil, a usar um “o” antes do pronome interrogativo “que” quando este tem valor de substantivo. Note como são comuns construções como O que aconteceu?, O que você acha disso? ou O que você quer?. Diga-se, porém, que esse “o” não tem função alguma. Alguém ainda se lembra de quando perguntávamos Que foi? Por que você está triste?, sem o “o” antes do pronome “que”?

Vale observar que, quando o pronome interrogativo é adjetivo, o “o” desaparece: Que sentido tem essa palavra? Que horas são? Que dia é hoje? Curiosamente, construções como Que são células? ou Que você acha disso? passaram a ser antecedidas desse “o”, que vem sendo aceito como “facultativo”. O fragmento que vamos examinar hoje, extraído de um texto de articulista de jornal, traz duas ocorrências desse “o”. Vamos a ele.

O que capturava Dora nesse jogo erótico e com o que ela se identificava ao permanecer nele? A chave para tirar o paciente do vitimismo, sem negligenciar o enredo do qual faz parte, é ajudá-lo a reconhecer para si mesmo o que ele fez com os limões que a vida lhe deu.

No início do período, temos o caso típico do “o” que passou a anteceder o pronome interrogativo substantivo “que” (O que capturava Dora?). Na segunda passagem, o pronome interrogativo é antecedido de uma preposição (“com”), situação na qual esse “o” inútil cria uma complicação, porque faz parecer que existe ali um pronome demonstrativo “o” (equivalente a “aquilo”), que naturalmente não existe.

Para facilitar o raciocínio, vejamos algumas interrogações sem esse “o”: De que você está falando? Para que fazer isso? A que se presta isso? Com que você concorda, afinal? Não fez a menor falta! Agora vejamos casos em que o “o” (pronome demonstrativo) é necessário antes do “que”:

  • O que me importa é preservar minha liberdade.
  • Deu seu apoio ao candidato, o que surpreendeu muita gente.

Na primeira sentença, o “o” pode ser substituído por “aquilo” ou “a coisa que”; ele é o sujeito do verbo “importar-se”. Na segunda, o “o” exerce a função de aposto resumidor de toda a oração anterior e serve de base para a oração adjetiva iniciada pelo pronome relativo “que”; nesse caso, é o “o” que nos permite entender que o que surpreendeu muita gente foi alguém ter dado apoio ao candidato; sem o “o”, o sentido mudaria (Deu seu apoio ao candidato, que surpreendeu muita gente = o candidato é que surpreendeu).

O mais recomendável é usar o “o” antes do “que” só quando ele for necessário. Vejamos:

Que capturava Dora nesse jogo erótico e com que ela se identificava ao permanecer nele?

O que capturava Dora nesse jogo erótico era algo misterioso, aquilo com que ela se identificava.

Apoio “em” ou “a”?

GRAMATICAIS. Às vésperas do primeiro turno da eleição, chamou-nos a atenção um título de notícia, publicado em um dos principais sites brasileiros. Quanto ao assunto, não será, por certo, objeto deste blog, mas a escolha da preposição pode ter levado a frase a mudar de sentido. Vejamos:

Um dos pais do Plano Real, Lara Resende vai declarar apoio em Lula

Afinal, dizemos “apoio em Lula”, “apoio a Lula” ou tanto faz? Quem abre um dicionário de regência nominal vê, logo de início, que “apoio” rege complemento com “a” ou “em”. Isso, porém, não significa que “tanto faz” usar uma ou outra preposição – e vamos ver por quê.

O substantivo “apoio” deriva do verbo “apoiar” (trata-se de um caso de derivação regressiva), o qual, em seu sentido primário de “buscar firmeza”, admite as preposições “a”, “em” e “sobre” indistintamente, com suaves distinções semânticas: apoiar o corpo a uma parede, apoiar o corpo em uma bengala, apoiar o corpo sobre uma das pernas. Em qualquer dos exemplos anteriores, pode-se substituir “o corpo” (objeto direto) pelo pronome reflexivo “se”: apoiar-se em uma bengala, apoiar-se a uma parede, apoiar-se sobre uma das pernas.  Do mesmo modo, dizemos algo como “o estudo apoiava-se em dados estatísticos”, ou seja, buscava nos dados sua sustentação. 

Por outro lado, o mesmo verbo “apoiar” é usado no sentido de “aprovar”. Daí uma construção como “André Lara Resende decide apoiar Lula”. Agora, temos um sentido diferente do anterior. Uma coisa é apoiar-se em algo, outra coisa é apoiar algo. Ao usar o substantivo “apoio”, é preciso escolher a preposição de acordo com o sentido pretendido.

Em vésperas de eleição, muita gente dá apoio a candidatos, portanto entendemos que o intuito do redator foi dizer que André Lara Resende vai declarar apoio (político) a Lula. Caso não deduzíssemos do contexto o sentido pretendido, seríamos levados a crer que Lara Resende vai declarar “estar apoiado” em Lula – veja só o tamanho da diferença.

Uma coisa é apoiar Lula, outra coisa é apoiar-se em Lula. Ao usar o verbo “apoiar”, a distinção fica mais clara. O emprego do substantivo “apoio” num contexto como esse requer a preposição “a”, que deixa implícita a ideia de “dar apoio a”. A preposição “a”, nesse caso, indica o destinatário da ação (caso dativo). Assim: 

Um dos pais do Plano Real, Lara Resende vai declarar apoio a Lula

Concordância na passiva sintética

GRAMATICAIS. A velha questão “Aluga-se casas” ou “Alugam-se casas” tornou-se objeto de controvérsia entre gramáticos e linguistas, estes últimos atentos ao uso mais frequente na língua efetivamente falada. Aqui trataremos do uso tradicional e formal da língua portuguesa, que constitui a principal demanda do público desta publicação.

O que justifica a flexão verbal de “alugam-se casas” é o princípio da concordância, segundo o qual o verbo concorda com o seu sujeito, que, no caso, é representado pala palavra “casas”. Em outras palavras, “casas são alugadas”.

Ora, é coisa comum confundir as construções “Aluga-se uma casa” e “Precisa-se de uma casa”, mas cada qual tem uma estrutura diferente. O leitor atento já percebeu que, na segunda frase, existe uma preposição “de”, inexistente na primeira. Isso mostra que os verbos “alugar” e “precisar” têm regimes diferentes, sendo o primeiro um transitivo direto (alugar alguma coisa) e o segundo um transitivo indireto (precisar de alguma coisa).

Os verbos transitivos diretos admitem mudar da voz ativa para a voz passiva. A voz verbal expressa a relação entre o sujeito e o verbo da frase. Quando o sujeito pratica a ação, temos voz ativa; quando o sujeito sofre uma ação praticada por outrem, temos voz passiva. Essa informação é essencial para compreender o problema.

Assim, quando dizemos, por exemplo, “Eu ouvi a música”, estamos na voz ativa (o sujeito “eu” praticou a ação de “ouvir”); quando dizemos “A música foi ouvida por mim”, estamos na voz passiva (o sujeito “música” sofreu a ação de ser ouvido, e “quem ouviu”, ou seja, “por mim”, é o agente da passiva). Agora que relembramos essas noções, vejamos um trecho extraído do noticiário:

Do ex-presidente, além dos epítetos (fascista, genocida), só se ouviu promessas trabalhistas e a negação da privatização da Eletrobrás, tema tão candente para o eleitorado. 

No fragmento acima, o verbo “ouvir” está na voz passiva, exatamente como o verbo “alugar” em “Alugam-se casas”, pois “as promessas trabalhistas e a negação da privatização da Eletrobras” foram ouvidas. Vemos, então, que o verbo pode estar na voz passiva mesmo que apareça na forma ativa; para tanto, será acompanhado do pronome apassivador “se”. Na prática, “ouve-se” equivale a “é ouvido”.

Caso o autor do texto tivesse usado o verbo apassivado na forma analítica (foram ouvidas), não teria errado na concordância. Todo o problema está na confusão entre a voz passiva sintética ou pronominal (verbo transitivo direto na sua forma ativa, seguido de um pronome “se”) e o sujeito indeterminado (da construção “Precisa-se de uma casa”).

A voz passiva sintética costuma ser uma opção quando o autor desconhece ou não quer revelar o elemento agente, ou seja, aquele que praticou a ação (o “agente da passiva”). Quando dizemos “só se ouviram promessas”, deixamos indeterminado o agente, ou seja, quem ouviu as promessas, mas informamos que as promessas foram ouvidas.

O elemento desconhecido, no caso, é o agente da passiva, não o sujeito. No caso de “Precisa-se de uma casa”, temos voz ativa com sujeito indeterminado (não há como transformar em passiva, pois “precisar” é transitivo indireto). De acordo com a tradição gramatical, o sujeito indeterminado com partícula “se” não ocorre com verbos que, na voz ativa, admitem objeto direto.

Quando o sujeito é indeterminado, o verbo permanece na terceira pessoa do singular (Assiste-se a bons filmes neste cinema; Dorme-se tranquilo no sítio; Era-se mais feliz naqueles tempos), mas, quando apenas se omitiu o agente da passiva, o verbo concorda com o sujeito (passivo), na terceira pessoa do singular ou do plural (Ouviu-se um ruído estranho / Ouviram-se ruídos estranhos). Assim:

Do ex-presidente, além dos epítetos (fascista, genocida), só se ouviram promessas trabalhistas e a negação da privatização da Eletrobrás, tema tão candente para o eleitorado.

Crase: errar por quê?

GRAMATICAIS. Não vamos mentir nem tapar o sol com a peneira. Muita gente bem escolarizada comete erros de grafia quando o assunto é a crase. Por que será? Não tentaremos adivinhar os motivos mais recônditos, mas vamos partir da definição do fenômeno, que é o mais importante para compreender todos aqueles casos particulares.

Bem, “crase”, para começar, não é o “acento” em si, mas um fenômeno fonético de fusão de sons vocálicos. No português atual, a fusão de dois “aa” (dois “aa” pronunciados e escritos como se fossem um só) é o único tipo de crase. Esses dois “aa” sobrepostos, portanto, é que constituem a crase, cuja grafia é “à” – o acento voltado para a esquerda chama-se “acento grave”. Pode ocorrer crase com o artigo “as”, no plural, portanto haverá a grafia “às”.

Para ocorrer crase, a primeira condição necessária é existir uma preposição “a”; a segunda é haver, na maior parte das vezes (não todas), um artigo “a”. A preposição aparece quando a regência do verbo ou do nome assim o exige (assistir a um filme, ir ao cinema, condenado ao ostracismo etc.). O artigo “a”, por sua vez, determina substantivos femininos (a peça, a escola, a prisão). Além disso, por ser um artigo definido, diferente de “uma”, que é indefinido (uma peça, uma escola, uma prisão), aparecerá nos contextos em que o substantivo nomear um elemento conhecido ou que possa ser depreendido do contexto (assistir à peça/ assistir a uma peça).

Com isso em mente, vamos observar dois fragmentos, extraídos cada um de uma publicação, que trazem problemas parecidos. Em ambos, houve o emprego abusivo do acento indicador de crase. Isso quer dizer que o redator sinalizou a crase onde ela não acontceu de fato. Vejamos:

  • O personagem de Dumont também atua diretamente no núcleo da protagonista Zoé, interpretada por Regina Casé, aliciando miseráveis na rua para enviar à uma fazenda de reprodução humana.
  • Ele acredita que, embora esse movimento seja válido, “não deveria ser um dever e sim uma opção”. “Prescrever usos linguísticos, sejam excludentes ou inclusivos, é sempre algo estranho à ciência”. Até porque, diz Schwindt, são poucas palavras, menos de 5%, sujeitas à essa modificação.

Nos dois casos acima, existe a preposição “a” (enviar a/ sujeitas a), mas inexiste o artigo definido feminino “a”. Vejamos por que seria impossível usar esse tipo de artigo nessas posições.

No primeiro trecho, “uma” é um artigo indefinido: ou dizemos “a fazenda” (artigo definido), ou dizemos “uma fazenda” (artigo indefinido). O “a” que antecede o artigo indefinido “uma” só pode ser uma preposição (enviar a uma fazenda); caso tivéssemos artigo definido, aí sim, ocorreria a crase (enviar à fazenda).

Problema semelhante se dá no segundo fragmento. Não se usa artigo antes do pronome demonstrativo “essa”, pois um e outro têm a função de determinar o substantivo. Por esse motivo, podemos dizer que “a” (artigo definido) e “essa” (pronome demonstrativo) são permutáveis no mesmo contexto. Pode haver uma preposição “a” antes do demonstrativo, mas crase é impossível. Ou dizemos “essa modificação”, ou dizemos “a modificação”. O “a” que antecede o demonstrativo é apenas uma preposição (sujeitas a essa modificação). Assim:

  • aliciando miseráveis na rua para enviar a uma fazenda de reprodução humana.
  • Até porque, diz Schwindt, são poucas palavras, menos de 5%, sujeitas a essa modificação.

A maior parte dos erros de crase pode ser eliminada com a simples aplicação da definição aos casos concretos. Há situações um pouquinho mais complexas, que serão examinadas oportunamente neste espaço.

Considerações sobre o “ex”

GRAMATICAIS. DEU NA MÍDIA. Nos textos da imprensa, o prefixo “ex-” aparece com grande frequência, mas nem sempre da melhor maneira. Como sabemos, essa partícula antecede um substantivo que denota uma condição perdida: ex-marido, ex-namorada, ex-funcionário, ex-presidente etc.

Na linguagem informal, o prefixo chega a ser usado ele próprio como um substantivo e, nesse caso, com o sentido de “ex-marido” ou “ex-namorado” (se estiver no masculino, “o ex”) ou de “ex-mulher”/ “ex-esposa” ou “ex-namorada” (se estiver no feminino, “a ex”). No fragmento escolhido para nossos comentários de hoje, temos o seguinte:

Ex-presidente do Banco Central (BC) durante oito anos dos governos Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Henrique Meirelles defendeu nesta segunda-feira, em entrevista ao [jornal], uma “reforma administrativa rigorosa” para superar os impasses políticos que envolvem o teto de gastos.

Henrique Meirelles, veja só, foi descrito como “ex-presidente do Banco Central durante oito anos dos governos Luiz Inácio Lula da Silva (PT)”. A considerar o que foi escrito, durante o governo Lula, Meirelles era “ex-presidente do Banco Central”, ou seja, tinha sido presidente do BC em período anterior.

É muito provável que o leitor corrija mentalmente a informação por dois motivos: (i) o leitor sabe de antemão que Meirelles foi presidente do Banco Central nos governos de Lula ou (ii) o leitor estranharia alguém ser “ex” durante algum período, dado que a condição de “ex” é permanente.

Para facilitar o raciocínio, basta pensar nos exemplos mais corriqueiros, como “ex-marido”, “ex-namorada”, “ex-diretor”. O prefixo “ex-” indica que a pessoa perdeu uma condição anterior, mas naturalmente não terá perdido a própria identidade. Ao dizer que fulano é ex-marido de fulana, a única informação transmitida é que o casamento acabou e esse homem deixou de ser marido daquela mulher.

Por esse motivo é que, se, por exemplo, um deputado morre durante o mandato, não o chamamos de “ex-deputado” – afinal, ele terá perdido a vida, não o cargo. Então diremos algo como “o deputado Fulano de Tal morreu na manhã de hoje”. Caso o político, em vida, já fosse “ex-deputado”, aí sim, morreria nessa condição (“O ex-deputado Fulano de Tal, que não tentou a reeleição, faleceu nesta manhã”).

Outro uso comum da imprensa são construções como “ex-URSS”, “ex-Febem” e agora “ex-Ibope”. Ora, a URSS, a Febem e o Ibope deixaram de existir. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas desmembrou-se e transformou-se em vários países; a Febem foi substituída pela Fundação Casa.; o Ibope fechou e seus antigos donos fundaram o Ipec, sendo Ibope e Ipec duas entidades diferentes. Nesses dois casos e em outros similares (como Alemanha Oriental, por exemplo), o ideal é usar o adjetivo “antigo (a)”. Assim: a “antiga URSS”, a “antiga Febem”, o “antigo Ibope”, a “antiga Alemanha Oriental” etc.

No caso do fragmento selecionado, como o redator considera importante a informação de que Meirelles foi presidente do Banco Central nos dois governos Lula, bastaria retirar o prefixo “ex-”. Caso isso não fosse importante, seria possível usar “ex-presidente”, mas omitindo o dado temporal. Veja as duas construções possíveis:

Presidente do Banco Central (BC) durante os oito anos de governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Henrique Meirelles defendeu nesta segunda-feira, em entrevista ao [jornal], uma “reforma administrativa rigorosa” para superar os impasses políticos que envolvem o teto de gastos.

Ex-presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles defendeu nesta segunda-feira, em entrevista ao [jornal], uma “reforma administrativa rigorosa” para superar os impasses políticos que envolvem o teto de gastos.

Verbo depois do sujeito

GRAMATICAIS. O verbo concorda com o sujeito, certo? Como nem sempre o sujeito vem imediatamente antes do verbo, de vez em quando alguém se confunde. Daí a importância de saber qual é o sujeito de cada verbo, certo?

Embora a posição mais comum do sujeito seja mesmo antes do verbo, nem sempre isso ocorre. Verbos como “existir”, “restar” ou “sobrar”, por exemplo, costumam aparecer com sujeito posposto a eles: “Existem pessoas cruéis”, “Restamos eu e ele na sala”, “Sobraram duas figurinhas” e assim por diante.

No trecho abaixo, vamos encontrar o verbo “vir” no infinitivo, mas, como esse infinitivo é atribuído a um sujeito explícito, dizemos que se trata de um infinitivo pessoal. Vejamos:

Mais recentemente, viu seu filho tido como favorito, o príncipe Andrew, envolvido em um escândalo sexual, ao vir à tona denúncias de que manteve relações sexuais com uma adolescente de 17 anos, em 2001, vítima do esquema de tráfico sexual do bilionário Jeffrey Epstein.

O infinitivo pessoal possui as flexões de pessoa e número (vir eu, vires tu, vir ele/ela, virmos nós, virdes vós, virem eles). Na primeira e na terceira pessoa do singular, a desinência é inexistente. Vale dizer que é a sua ausência que nos informa que estamos diante de uma dessas duas pessoas (o contexto se encarregará de explicitar qual das duas).

No fragmento acima, o que vem à tona são “denúncias”, no plural. Temos, portanto, um sujeito explícito na terceira pessoa do plural, a pedir a flexão do verbo. Vejamos:

Mais recentemente, viu seu filho tido como favorito, o príncipe Andrew, envolvido em um escândalo sexual, ao virem à tona denúncias de que manteve relações sexuais com uma adolescente de 17 anos, em 2001, vítima do esquema de tráfico sexual do bilionário Jeffrey Epstein.