GRAMATICAIS. Há certas palavras que frequentemente andam juntas e acabam sendo percebidas como expressões fixas, embora não o sejam. Hoje vamos falar aqui de dois casos muito parecidos: “pedir emprestado” e “deixar claro”.
Como se vê, em ambos, temos um verbo (pedir, deixar) e um adjetivo (emprestado, claro). O adjetivo em português concorda em gênero e número com o substantivo a que se refere (dinheiro emprestado, joia emprestada; objetivo claro, intenções claras), portanto as sequências “pedir emprestado” e “deixar claro” referem-se a substantivos, os quais, por sua vez, determinarão a concordância dos adjetivos. Logo é preciso observar o restante da frase para saber como se comportarão esses adjetivos.
Vejamos este fragmento de uma crônica:
Flávio Bolsonaro, então deputado estadual, comprou em 2008 várias salas num centro comercial do Rio por R$ 86,7 mil em dinheiro vivo, que pediu emprestado ao pai, a um irmão e a um assessor do pai, enfiou numa sacola e levou ao caixa do banco.
Segundo o texto, a pessoa em questão pediu um empréstimo de R$ 86,7 mil ao pai, a um irmão e a um assessor do pai. Note que o adjetivo “emprestado” deveria estar no plural, concordando com os oitenta e seis mil e setecentos reais (R$ 86,7 mil em dinheiro vivo, que pediu emprestados). Tivesse pedido apenas R$ 1, aí sim, o adjetivo ficaria no singular (por exemplo, imaginemos uma frase como esta: Flávio disse que nunca pediu emprestado sequer um real ao pai).
Se o objeto do empréstimo fossem joias, teríamos, por exemplo, isto: A moça pediu emprestadas as joias da amiga. Como vemos, o adjetivo “emprestado” concorda com a coisa emprestada.
O mesmo vale para “deixar claro”: Convém deixar claros os seus objetivos; É preciso deixar claras as suas intenções. O adjetivo “claro” concorda com o termo a que se refere.
É muito comum que o complemento do verbo “deixar” seja uma oração inteira (geralmente iniciada pela conjunção “que”). Nesse caso, “claro” fica mesmo no masculino singular, ou seja, na forma neutra (não marcada, sem flexão), concordando com a oração como um todo (É bom deixar claro que não estamos brincando).
Pode acontecer de a oração não ser iniciada pela conjunção “que”, mas o que importa saber é que o adjetivo permanece no masculino singular quando se refere a uma oração inteira. Assim, podemos dizer isto: É importante deixar claro quais informações devem estar na primeira página do texto. O pronome “quais” introduz a oração que completa o verbo “deixar” (deixar isto claro; isto = oração).
Para escrever corretamente, é importante perceber a estrutura da frase. Compare estes dois períodos: (a) É necessário deixar claro quais são as suas intenções; (b) É necessário deixar claras as suas intenções. Em (a), “quais são as suas intenções” é uma oração (portanto “claro” fica no masculino singular); em (b), “intenções” é um substantivo, com o qual o adjetivo concorda em gênero e número (“claras”).
Agora você já sabe como se faz a concordância nesses casos. Na canção “Samba da Utopia”, composta por Jonathan Silva, porém, temos os seguintes versos iniciais: “Se o mundo ficar pesado/ Eu vou pedir emprestado/ A palavra poesia”. A concordância correta seria “eu vou pedir emprestada a palavra poesia”, mas o autor aparentemente preferiu marcar a rima “ficar pesado”/ “pedir emprestado”, lançando mão daquilo que se convencionou chamar de “licença poética”. Deixo aqui o link da interpretação da cantora Ceumar. Preste atenção a essa bela letra, muito atual nestes tempos:
Samba da Utopia – Jonathan Silva
Se o mundo ficar pesado/ Eu vou pedir emprestado/ A palavra poesia//
Se o mundo emburrecer/ Eu vou rezar pra chover/ Palavra sabedoria//
Se o mundo andar pra trás/ Vou escrever num cartaz/ A palavra rebeldia//
Se a gente desanimar/ Eu vou colher no pomar/ A palavra teimosia//
Se acontecer afinal/ De entrar em nosso quintal/ A palavra tirania//
Pegue o tambor e o ganzá/ Vamos pra rua gritar/ A palavra utopia.
Olá, profa Thaís.
Ótima explicação!
Acompanho, com muito interesse, seu trabalho desde a época do Vestibulando na TV Cultura.
Abraço,
Ronaldo Cardoso
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Ronaldo, que bacana! Continue acompanhando esta nova iniciativa!
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Puxa! Fiquei na dúvida justamente ao ouvir “samba da utopia”. Me perguntei: Será que desaprendi?..rs… Ainda bem que achei seu artigo. Parabéns e muito obrigada!
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