“Previsto para ocorrer”: sim ou não?

GRAMATICAIS. Quem tem o hábito de ler jornais certamente já encontrou a construção “previsto para” seguida de um verbo no infinitivo: o espetáculo está previsto para estrear no próximo sábado, a obra está prevista para ser entregue no fim do ano etc.

Ao que tudo indica, essa moda linguística começou quando os jornais se deram conta de que não podiam afirmar com certeza que algo seria realizado em alguma data sem que, de alguma forma, se responsabilizassem pelo cumprimento da promessa alheia.

Imaginemos que um jornal publique que um espetáculo vai estrear no próximo sábado e que o espetáculo não estreie. Em tese, bastaria noticiar o motivo do cancelamento, mas, caso tenha havido um erro de informação da assessoria ou algo do gênero, como fica o jornal? Vai parecer que apurou mal a notícia.

Diante de um fato razoavelmente prosaico, a solução era encontrar uma “fórmula” que isentasse o jornal desse tipo de responsabilidade. Digamos então que há previsão de estreia, que isso está previsto etc. Até aí, tudo bem. É perfeitamente possível dizer que a estreia do espetáculo está prevista para o próximo sábado. Não é isso, porém, o que costumamos ver na imprensa.

Em vez de dizer que “a estreia do espetáculo” está prevista, o mais comum é que se diga que “o espetáculo está previsto”. O que, de fato, está previsto, porém, não é o espetáculo em si, mas a sua estreia, o seu término ou qualquer outra ação relacionada a ele, que deveria aparecer na forma nominal (o substantivo “estreia” no lugar do verbo “estrear”, o substantivo “término” no lugar do verbo “terminar” e assim por diante). Nessa construção, típica da imprensa, a ação verbal é inserida na forma de um infinitivo preso ao particípio “previsto” por meio da preposição “para” (“previsto para estrear”, “previsto para terminar”).

O verbo “prever” rege, sim, a preposição “para”, que, no entanto, introduz um complemento de natureza temporal (previsto para amanhã, previsto para o próximo sábado). Em vez de “o espetáculo está previsto para terminar às 23 horas”, melhor me parece “o término do espetáculo está previsto para as 23 horas”, porque o sujeito da oração (o término do espetáculo) anuncia o assunto de que tratará o predicado (está previsto para as 23 horas). Muito mais simples para quem lê, além de ser mais preciso. O mesmo vale para o outro exemplo: em vez de dizer que a obra está prevista para ser entregue no fim do ano, melhor dizer que a entrega da obra está prevista para o fim do ano. Certo?

A situação parece ainda pior quando o jornalista usa o verbo “ocorrer” depois de “previsto”, como lido recentemente em reportagem sobre o bloqueio do aplicativo Telegram pelo STF: “O bloqueio da plataforma não chegou a entrar em vigor – ele estava previsto para ocorrer nesta segunda, 21”. Note que, nesse caso, o sujeito já era o substantivo abstrato “bloqueio” (ação de bloquear), portanto bastava dizer que ele estava previsto para esta segunda-feira, 21, certo?

E só mais uma coisinha: a própria ideia de “ocorrer” (ou de “acontecer”, de “sobrevir”) parece rechaçar a noção de previsão, pois está ligada àquilo que sucede sem aviso. Não é à toa que “ocorrer” é usado também no sentido de “vir à memória”, como um ato involuntário, que sobrevém (Ocorreu-lhe na hora um pensamento incômodo). “Previsto para ocorrer”, portanto, é duplamente estranho à nossa língua, tanto pela sintaxe como pela semântica.

Publicado por Thais Nicoleti

Thaís Nicoleti é formada em português e linguística pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e licenciada pela Faculdade de Educação da mesma universidade.

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