‘Frauda’ [sic] e o plural de ‘sarau’

ORTOGRAFIA. GRAMATICAIS. No português do Brasil, é muito comum a pronúncia do “l” como “u”, sem nenhuma diferença. Aliás, isso está na raiz da conhecida confusão entre “mal” e “mau”, os dois regularmente pronunciados da mesma forma.

No caso desse par, a dica de sempre é distinguir os termos pelos seus antônimos: “mal” é o oposto de “bem”, “mau” é o oposto de “bom”. Na maior parte dos casos, o truque dá certo. Basta fazer o teste: mau vizinho/ bom vizinho, cozinha mal/ cozinha bem. Em termos gramaticais, grosso modo, “mal” é advérbio (modifica verbos) e “mau” é adjetivo (caracteriza substantivos). O tema pode ser aprofundado, mas não vamos fazer isso hoje.

Agora, vamos examinar dois fragmentos de textos publicados em jornais de grande circulação. Nos dois, temos questões de grafia ligadas às letras “u” e “l”. Vejamos:

“No dia seguinte, voltou à UPA se queixando de dores e mais uma vez [foi] liberado. Três dias depois, foi internado e encaminhado à cirurgia de emergência. Por intercorrências da operação, passou por outras duas cirurgias. Nesse período emagreceu 15 quilos, precisou usar fraudas, ficou impossibilitado de se locomover e de trabalhar e ficou sem fonte de renda por vários meses, sobrevivendo com a ajuda de familiares.”

“Se Barroso está mesmo bem-intencionado e quer prestar um serviço à República – e não há razões para duvidar disso –, melhor faria se trocasse os sarais eivados de conflitos de interesse pelo silêncio institucional, e a afetação iluminista pelo respeito aos limites do cargo.”

No primeiro trecho, o redator relatava a história de um paciente que moveu ação judicial contra hospital público por negligência no atendimento. O texto, reproduzido em um importante jornal, é praticamente idêntico ao publicado no site do STJ-SP, no qual também se registra o termo “fraudas” no lugar de “fraldas”. A palavra “fraudas” existe, mas como forma verbal de segunda pessoa do singular do verbo “fraudar” no presente do indicativo (tu fraudas).

No segundo, temos um erro na pluralização de “sarau”. O problema, naturalmente, está ligado à pronúncia do “l” e do “u”, idêntica na maior parte do país, à exceção talvez de algumas regiões do sul. Do ponto de vista da ortografia, o plural de palavras terminadas em “u” se faz com o acréscimo de um “s” (degrau – degraus), enquanto o de palavras terminadas em “l” se faz com “-is” (para as oxítonas: jornal – jornais, barril – barris) e com “-eis” (para as paroxítonas: hábil – hábeis, móvel – móveis).

Tudo indica que o redator tenha associado o plural das terminadas em “l” (jornal, manancial, normal) à forma “sarau”, como se fosse “saral” (forma inexistente). A palavra “sarais” existe, mas é uma forma do verbo “sarar” (vós sarais).

Hoje, é comum ouvirmos dizer que esse tipo de erro não é importante porque o contexto esclarece o sentido pretendido. De fato, não deixamos de entender a mensagem por causa da grafia errada, mas perdemos o rigor. O estudo da língua, desde a ortografia até as questões mais complexas, estimula nossa capacidade de abstração e de compreensão do universo.

Vamos às correções:

Nesse período emagreceu 15 quilos, precisou usar fraldas, ficou impossibilitado de se locomover e de trabalhar […].

“Se Barroso está mesmo bem-intencionado e quer prestar um serviço à República – e não há razões para duvidar disso –, melhor faria se trocasse os saraus eivados de conflitos de interesses pelo silêncio institucional e a afetação iluminista pelo respeito aos limites do cargo.”

O leitor atento notou que, no segundo fragmento, alteramos “conflitos de interesse” para “conflitos de interesses“. No singular, a expressão é “conflito de interesses”, ou seja, existem em determinada situação “interesses conflitantes” (os interesses é que estão em conflito). Em resumo, o que pode estar no singular ou no plural é a palavra “conflito”;”interesses” fica sempre no plural.

A vírgula antes do “e” também não tinha função, portanto foi eliminada: trocar os saraus pelo silêncio e a afetação pelo respeito. O mesmo verbo (“trocar”) tem dois pares de complementos organizados em paralelismo pela conjunção “e” (trocar X por Y e A por B), sem nenhuma necessidade de vírgula.

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Publicado por Thais Nicoleti

Thaís Nicoleti é formada em português e linguística pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e licenciada pela Faculdade de Educação da mesma universidade.

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