“Aplicar”: portinglês?

GRAMATICAIS. Uma boa tradução requer conhecimento das duas línguas em questão e sensibilidade para estabelecer correspondências coerentes. O que se vê, sobretudo na imprensa, são traduções apressadas, feitas com base em uma vaga semelhança superficial entre os termos. Não é difícil que se deixe enganar pelos “falsos cognatos” do inglês. Vejamos este fragmento, publicado recentemente:

Natural de São Paulo, mas morando em Palhoça (SC), a 22 km de Florianópolis, o operador de logística então decidiu aplicar por responder aos requisitos e pela empresa ter sede na Grande Florianópolis, próximo à cidade onde reside.

O site noticiava o caso de um homem que foi alvo de galhofa feita por recrutadora de RH em razão de estar ele procurando emprego aos 45 anos de idade. Segundo ela, ele não teria chance por estar muito velho. No trecho em questão, chama a atenção o uso inapropriado do verbo “aplicar”, talvez por influência do inglês “apply for”, que é um phrasal verb, ou seja, uma unidade semântica formada de verbo seguido de partícula (preposição ou advérbio). 

O erro reside em traduzir “apply” (aplicar) sem considerar a preposição (“for”), que lhe dará um novo significado. “Apply for” traduz-se por “candidatar-se” ou eventuais sinônimos. No caso em questão, o rapaz decidiu candidatar-se à vaga e o fez por dois motivos: por responder aos requisitos e por ter a empresa sede na Grande Florianópolis, perto da cidade onde ele vive.  

A construção “pela empresa ter sede” não condiz com a norma-padrão do português, pois “pela”, a contração da preposição “por” com o artigo “a”, só se usa quando a preposição rege apenas o nome antecedido pelo artigo (por exemplo, “atendido pela funcionária”).

No caso da construção usada no trecho em questão, a preposição “por” não rege apenas o termo “empresa” (“a empresa”); rege, isto sim, a oração “a empresa ter sede” (oração infinitiva, aquela cujo verbo permanece no infinitivo). Nesse tipo de estrutura sintática, a preposição não se contrai com o artigo. Para evitar a sequência “por a empresa ter sede”, invertemos a ordem das palavras: “por ter a empresa sede”. Quem considerar essa opção muito formal poderá optar por outras transformações (desenvolvimento da oração, nominalização etc.). Nossa língua é pródiga em recursos, que nos permitem expressar com clareza as nossas ideias.

Finalmente, é correto usar a locução “próximo a”, mas convenhamos que nossos ouvidos a rejeitam quando associada a termo feminino (“Grande Florianópolis, próximo à cidade”). Isso não acontece por acaso. O fato é que os adjetivos “próximo”, “próxima”, “próximos” e “próximas” permanecem normalmente em uso, concordando com os substantivos a que se referem. Nem tudo o que é “certo” soa bem, e soar bem também é importante no processo comunicativo. Há opções que tornam o texto mais fluente. Vejamos uma delas:

Natural de São Paulo, mas morando em Palhoça (SC), a 22 km de Florianópolis, o operador de logística então decidiu candidatar-se por responder aos requisitos e por ter a empresa sede na Grande Florianópolis, perto da cidade onde reside.

O nome e o pronome

GRAMATICAIS. A imprensa brasileira tem o hábito de chamar todo o mundo pelo sobrenome, principalmente da segunda menção em diante. Do lado de fora das redações, esse hábito, provavelmente mimetizado dos jornais americanos, por vezes é percebido com alguma estranheza. Um título como “Beltrão e Severo abrirão exposição de fotos”, por exemplo, refere-se às atrizes Andréia Beltrão e a Marieta Severo. Estranho, não?

Esse não é o tema principal de hoje, mas foi suscitado pelo fragmento selecionado para nossa análise. Vejamos:

Melhem foi demitido da emissora após receber denúncias de assédio sexual envolvendo Calabresa e outras mulheres do canal. A humorista também o acusou de ter prejudicado sua carreira e a impedido de estrelar outros dois programas da Globo. Ele nega.

Ainda que estilo, como gosto, não se discuta, “Calabresa” nem mesmo é o sobrenome da atriz envolvida em um caso de assédio sexual. O nome artístico da comediante é que é “Dani Calabresa”, de sorte que o uso formal e quase pomposo de “Calabresa” como se fosse seu sobrenome parece inapropriado. Feita essa observação, que retomaremos no final, vamos ao nosso tema principal, que é a colocação do pronome átono.

O trecho traz uma sequência de dois verbos no infinitivo pessoal composto, ou seja, aparecem sob a forma de verbo auxiliar “ter” ou “haver” no infinitivo seguido de particípio. Em certas condições, é perfeitamente possível suprimir o verbo auxiliar do segundo verbo (e terceiro ou quarto, se houver). Por exemplo:

Foi acusado de ter gritado com o professor, ofendido os colegas e tratado mal os funcionários da escola.

Certamente não haveria necessidade de repetir a forma “ter” (ter ofendido, ter tratado mal), que ficou subentendida na sequência. No trecho em análise, no entanto, a supressão do auxiliar não seria possível, pois a ele se prenderia o pronome átono “a”, que acabou solto, como se estivesse ligado ao particípio “impedido”.

Não se diz “ter a impedido”, certo? Por quê? O motivo é que esse pronome átono deve estar preso ao verbo auxiliar (ênclise). Sendo vocálico (o, a, os, as) e estando depois da terminação “-r”, de infinitivo, teremos uma construção em que a desinência “-r” desaparece e uma letra “l” é acrescida ao pronome (no caso, “tê-la impedido”). Para corrigir o trecho, portanto, devemos repetir o auxiliar. Veja:

Melhem foi demitido da Globo após receber denúncias de assédio sexual que envolviam a atriz Dani Calabresa e outras mulheres que trabalhavam com ele. A humorista também o acusou de ter prejudicado sua carreira e de tê-la impedido de estrelar outros dois programas da emissora. Ele nega.

Na sugestão acima, manteve-se o nome artístico da atriz, pelo qual é conhecida (embora fosse possível usar seu nome verdadeiro seguido de “conhecida como Dani Calabresa”). A colocação pronominal foi ajustada, o que tornou necessária a repetição do auxiliar “ter” (“tê-la impedido”).

Finalmente, o leitor atento deve ter percebido na reformulação do texto uma alteração na posição dos termos “Globo” e “emissora” e a supressão de “canal”. Os três termos representam uma mesma referência, sendo “Globo” o mais específico por ser um nome próprio. É por ser mais específico que deve aparecer primeiro, de tal modo que “emissora”, no contexto apresentado, a ele se refira. Quanto à supressão de “canal”, esta se deve ao efeito de duplicação que produzia no período. Vejamos novamente:

Melhem foi demitido da emissora após receber denúncias de assédio sexual envolvendo Calabresa e outras mulheres do canal.

Nota-se a artificialidade da construção, em que o redator usa dois termos sinônimos (embora a sinonímia seja imperfeita) para um mesmo referente dentro do mesmo período. Por estarem dentro do mesmo período, “emissora” e “canal” sugerem ter referentes distintos. Só compreendemos o que se pretende dizer porque já conhecemos a história!

Como ensina o professor Evanildo Bechara, escrever com elegância é usar todos os recursos de que a língua dispõe. Estudar esses recursos é o propósito deste espaço.

Deu a louca no roteirista: um solecismo

PARA ALÉM DA GRAMÁTICA. DEU NA MÍDIA. Hoje vamos analisar um título jornalístico que encabeça uma daquelas reportagens que antecipam o que vai acontecer nos capítulos seguintes de novela de TV. A crer no que disse o redator, quem estiver acompanhando a trama de Pantanal imaginará que o roteiro sofreu uma mudança brusca. Vejamos:

Pantanal: depois de se entregar para Tadeu, José Leônico dá um trato no filho e Zefa sofre nas mãos de Renato

Onde se lê José Leônico, leia-se José Leôncio, o nome do fazendeiro de Mato Grosso do Sul, criador de gado, que está no centro do enredo. Tadeu, na trama, é um de seus filhos, e Zefa é a namorada do rapaz. Renato é um dos filhos de Tenório, dono da fazenda vizinha.

Segundo o resumo que o redator tenta fazer no título, José Leôncio se entregou (sexualmente) a Tadeu e, depois disso, “deu um trato” no filho; a namorada de Tadeu (Zefa) sofre nas mãos do Renato (filho do vizinho).

Só entende o que, de fato, aconteceu quem está a par do enredo. O título é intransponível para alguém que não acompanhe a novela. Um pouco de gramática pode ajudar a desembaraçar os fios dessa trama.

A oração subordinada temporal “depois de se entregar para Tadeu”, posta no início do período, não apresentou claramente o seu sujeito (quem se entregou para Tadeu), portanto fica implícito que esse sujeito é idêntico ao da oração subsequente (oração principal) “José Leôncio dá um trato no filho”. Daí a ideia de que José Leôncio se entregou para Tadeu. Do ponto de vista gramatical, foi isso o que ocorreu! 

Temos um caso de duplicação (um mesmo elemento é referido de duas formas, fazendo parecer que são dois elementos) em “Tadeu” e “filho”, que, no caso, são a mesma pessoa, embora o tal José Leôncio tenha outros filhos. Esse tipo de construção favorece a confusão.

A expressão “dar um trato” está no lugar de “dar uma reprimenda” ou “dar uma bronca” – não nos parece que “dar um trato” tenha esse sentido (“dar um trato nos cabelos” = “arrumar os cabelos”; “dar um trato na casa” = fazer limpeza, arrumação). Além disso, “sofrer nas mãos de” vai muito além do que acontece entre Zefa e o rapaz Renato, que vagamente demonstra interesse afetivo-sexual por ela.   

Afinal, o que, de fato, ocorreu? Zefa se entregou a Tadeu, Tadeu foi repreendido pelo pai (José Leôncio) por tê-la seduzido, e Renato deixa claro que tem interesse sexual por ela. É muita informação para um título só, mas vamos tentar ajudar o redator. Vejamos:

Pantanal: Zefa, depois de se entregar a Tadeu, que por isso leva bronca do pai, José Leôncio, enfrenta as investidas de Renato

Quem assistir à novela poderá propor outras construções também. Quer tentar? Envie a sua sugestão!

“A partir dos joelhos”

SEMÂNTICA. O trecho abaixo, extraído de uma notícia publicada em um site, mostra que aquilo que, na fala, até funciona pode, na escrita, provocar estranhamento ou mesmo um mal-entendido. O redator confia plenamente na ajuda do contexto ou na contribuição da fotografia que ilustra a reportagem e, talvez por isso, investe pouco no texto em si. Vejamos de que se trata: 

Em 20 de junho, uma advogada foi barrada na portaria do prédio da Justiça Federal em Porto Velho (RO) porque estava com uma saia curta demais. A comissão julgadora dos trajes consistiu em dois funcionários da segurança, que interpretaram a norma em vigor na época: era proibido entrar no local com roupa medindo 15 centímetros ou mais a partir dos joelhos.

A primeira observação a fazer é que uma “roupa” (termo genérico, que engloba qualquer peça, da lingerie ao sobretudo) medindo 15 centímetros “a partir dos joelhos” mais parece um traje longo que um traje curto. O redator pensou nos joelhos como ponto de referência do comprimento, o que está correto, sendo esse o uso corrente na costura. O problema está na expressão “a partir de”, que, embora reafirme o ponto de referência, deixa de considerar o dado mais importante: para cima ou para baixo?

É por isso que, no mundo da moda, se usam as expressões “acima do joelho” e “abaixo do joelho”. Além disso, a proibição a que se refere a notícia, ao que tudo indica, não se estende a todo tipo de roupa, uma vez que a preocupação do legislador, ao que tudo indica, está voltada para a exposição das pernas. 

Temos nesse caso um uso impreciso dos hipônimos (termos específicos) e dos hiperônimos (termos gerais) – no par “saia”/”roupa”, “saia” é hipônimo e “roupa” é hiperônimo. É possível usar o hiperônimo para retomar o hipônimo, mas é essencial saber se o atributo de um é também atributo do outro. No caso, não deu certo, pois a regra se aplica a certos tipos de roupa, não a todas as roupas.

Outra questão importante diz respeito à enunciação. No período inicial, afirma-se que a advogada foi barrada “porque estava com uma saia curta demais”. O redator considerou relevante dar essa notícia, pois, aparentemente, achou incorreto ou discutível que a mulher fosse impedida de entrar no tribunal por esse motivo. 

Talvez sem intenção, ao reproduzir o motivo do impedimento da passagem, corroborou o dado que o justificava, afinal, ela usava uma “saia curta demais” (a foto que acompanha a matéria, no entanto, permite-nos pôr em dúvida a adjetivação “curta demais”). Caso não quisesse assumir como sua a opinião alheia, o redator poderia ter dito “uma saia que foi considerada curta demais”.  Vejamos uma sugestão:

Em 20 de junho, uma advogada foi barrada na portaria do prédio da Justiça Federal em Porto Velho (RO) porque usava uma saia que foi considerada curta demais. A comissão julgadora dos trajes consistiu em dois funcionários da segurança, que interpretaram a norma em vigor na época: era proibido entrar no local com shorts, bermudas ou vestidos e saias 15 centímetros ou mais acima dos joelhos.

Posição dos termos na frase e ambiguidade

PARA ALÉM DA GRAMÁTICA. DEU NA MÍDIA. Há títulos jornalísticos que só são bem compreendidos por quem já tenha visto a notícia em outro lugar. O redator, que está enfronhado no assunto, certamente não percebe as interpretações que suas palavras podem suscitar. O resultado pode ser uma boa confusão ou mesmo “desinformação”, como hoje se diz.

Vejamos um título curioso, no qual apontamos uma situação de ambiguidade (ou dupla leitura) por falta de um termo que descreva uma situação de tripla leitura (!). Vamos ao fragmento:

Michelle pediu que André Marinho imitasse Bolsonaro após saber de facada, diz comunicador em livro

O sintagma “após saber da facada”, uma oração subordinada adverbial temporal, pode referir-se a Bolsonaro, o termo que lhe é mais próximo, mas também a Michelle e a André Marinho. A qual dos três se refere o verbo “saber”?

A leitura do texto subsequente nos dará a pista: foi Michelle que, após saber da facada (o misterioso atentado de Juiz de Fora), pediu a André Marinho que imitasse Bolsonaro. A notícia em si é um pouco estranha, mas não nos deteremos nas idiossincrasias da relação do casal. O fato relatado é que André Marinho informa Michelle de que o marido dela levou uma facada durante um comício e a reação imediata dela é pedir a ele que imite o marido dela. Importa aqui observar que a posição do adjunto adverbial (que, às vezes, é uma oração adverbial) é um elemento relevante para a clareza do texto.

Ao colocar a oração adverbial reduzida de infinitivo (o verbo “saber”, no infinitivo, sem sujeito explícito) depois dos três nomes, o redator abre a possibilidade de que o verbo se refira a qualquer um deles. De pouca valia é a “regra” jornalística de começar os títulos pelo sujeito da oração quando a compreensão do texto é prejudicada. Mais importante, sempre, é assegurar a clareza da informação. Veja uma sugestão:

Após saber de facada, Michelle pediu a André Marinho que imitasse Bolsonaro, diz comunicador em livro

Vale observar que o verbo “pedir” tem dois complementos: o que se pede e a quem se pede (pediu a André Marinho que imitasse Bolsonaro). No texto original, os dois complementos se fundem em um só (pediu que André Marinho imitasse Bolsonaro). O problema desta última construção é que não se diz a quem foi dirigido o pedido. Até pode estar subentendido, mas a língua portuguesa oferece os recursos para uma expressão clara e elegante.

“Oscila para cima”

GRAMATICAIS. DEU NA MÍDIA. Em época de eleição e de pesquisas de opinião, voltamos a ler nos jornais as construções “fulano oscila para cima” ou “beltrano oscila para baixo”, relativas à movimentação de pontos percentuais nos levantamentos estatísticos. Um exemplo disso foi publicado recentemente em um jornal:

BTG/FSB: Lula fica estável com 45%; Bolsonaro oscila dois pontos para cima

Os jornalistas, aparentemente, cunharam essas construções (“oscila para cima” e “oscila para baixo”) para noticiar as variações na porcentagem de aprovação (ou de rejeição) do candidato ocorridas dentro da margem de erro da pesquisa. Caso usassem os verbos “subir” e “descer”, incorreriam em erro estatístico, pois as variações dentro da margem de erro, rigorosamente, são desprezíveis desse ponto de vista.

Se fôssemos analisar o caso com o devido rigor, diríamos que esse tipo de variação, uma vez que esteja dentro do intervalo erro estatístico, nem mesmo deveria ser notícia. Toda pesquisa informa qual é a sua margem de erro (em geral, 2 ou 3 pontos percentuais), e esse dado é importante, pois um candidato que suba 1 ponto percentual, por exemplo, não terá “subido” efetivamente. Os jornais, no entanto, não querem perder um milímetro sequer da movimentação das pesquisas e acabam fazendo certos malabarismos linguísticos.

“Oscilar”, como sabemos, é fazer o movimento de pêndulo, ou seja, ir e voltar de um lado para outro. Podemos aceitar facilmente que o movimento pendular, por analogia, se dê entre um ponto superior e um ponto inferior. Não seria esse o maior problema do uso do verbo nessa situação específica. O que complica a situação é que a oscilação é um movimento de vaivém. Não há como oscilar “para um lado”.

Uma sugestão para evitar o uso forçado do verbo “oscilar”, flagrantemente inadequado, seria, por exemplo, o seguinte: 

BTG/FSB: Lula fica estável com 45%; Bolsonaro avança dois pontos dentro da margem de erro

Claro está que a reportagem deveria explicar o que é margem de erro e deixar claro que a variação, quando se dá dentro desse intervalo, não representa, efetivamente, nada do ponto de vista da estatística. Esse título, por certo, revelaria que sua informação é inócua, mas, pelo menos, seria honesto e gramaticalmente correto.

“Cabe recurso”

GRAMATICAIS. O redator do trecho abaixo, extraído de matéria jornalística, negligenciou certos aspectos sintáticos, ligados à regência verbal, e aspectos semânticos, que, como veremos, estão interligados. Vejamos o fragmento:

Réu primário, o apresentador teve a privação de liberdade substituída por medidas restritivas de direito. Ele prestará serviço à comunidade pelo tempo da pena e deverá pagar cinco salários mínimos que serão revertidos na compra de cestas básicas para organizações sociais. A medida cabe recurso

Tomemos, de saída, a passagem que mais nos chama a atenção: “a medida cabe recurso”.  É verdade que a construção é relativamente comum, mas nem por isso é válida. “A medida” não é aquilo que cabe ou deixa de caber. Em outras palavras, o sujeito do verbo não é “a medida”, mas, sim, “o recurso” (é o recurso que cabe).

Se é o recurso que cabe (ou é cabível), qual será, então, a função sintática do termo “medida”? Lembrar que “recurso”, entre outras acepções, descreve o ato de “recorrer” pode ajudar no raciocínio. Juridicamente se recorre de uma sentença ou decisão, ou seja, pede-se o seu reexame. Da mesma forma, dizemos que cabe recurso de uma sentença ou decisão. O redator tomou como sujeito do verbo aquilo que seria complemento do núcleo do sujeito, o que produz um defeito de sintaxe (chamado genericamente de “solecismo”).

O leitor atento terá observado que o redator empregou a palavra “medida” de modo impreciso, no lugar de “sentença” ou “decisão”. “Medida” seria mais apropriado para indicar uma “providência” ou “meio para atingir um fim” (uma medida governamental, uma medida provisória etc.). A escolha das palavras sempre traz implicações do ponto de vista semântico, pois não existe sinonímia perfeita, ou seja, cada termo tem seu significado preciso.

Outro ponto que merece observação é o uso do verbo “reverter”, que, no contexto, tem o sentido de transformar (uma coisa é transformada em outra). Assim, a multa (de cinco salários mínimos) reverte-se em cestas básicas (não na compra de cestas básicas).

No texto original, o autor diz “deverá pagar cinco salários mínimos”; em nossa sugestão, acrescentamos a palavra “multa”, pois os cinco salários mínimos são uma medida pela qual se calcula a multa a ser paga (em outras palavras, o sentenciado não vai pagar salário a ninguém; vai, isto sim, pagar uma multa cujo valor equivale ao de cinco salários mínimos e essa multa é que vai ser revertida em cestas básicas). Vejamos:

Réu primário, o apresentador teve a privação de liberdade substituída por medidas restritivas de direito. Ele prestará serviço à comunidade pelo tempo da pena e deverá pagar multa de cinco salários mínimos que será revertida em cestas básicas a serem doadas para organizações sociais. Cabe recurso da decisão

“Caso” e “acaso”

GRAMATICAIS. O autor de uma newsletter, muito interessante por sinal, precisou redigir um aviso aos seus leitores que não conseguiam receber o material. Ao elaboar a mensagem, fez uma confusão que é bastante comum no uso cotidiano do português. Vejamos:

Alguns leitores têm relatado que as primeiras edições da newsletter são desviadas para a aba “Promoções” (ou “Promotions” na versão americana). Acaso não encontre a edição em sua caixa de entrada, após confirmação da assinatura, procure lá. É provavelmente onde está.

Vemos uma confusão entre duas palavras parecidas, “caso” e “acaso”. “Caso” (um caso sério, um caso de polícia, um caso de amor, um caso de Covid-19), além de ser um substantivo, é uma conjunção subordinativa condicional, equivalente a “se”.

Carlos Drummond de Andrade, em seu famoso Poema de Sete Faces, diz:

Mundo mundo vasto mundo, Se eu me chamasse Raimundo/ seria uma rima, não seria uma solução/ Mundo mundo vasto mundo,/ mais vasto é meu coração.

No lugar do “se”, poderia ter usado “caso” sem prejuízo de sentido: “caso eu me chamasse Raimundo”. “Acaso”, por sua vez, pode ser um substantivo, que nomeia uma ocorrência incerta ou fortuita (O acaso nos uniu; Aquilo foi obra do acaso), ou mesmo um advérbio de dúvida, equivalente a “talvez”, “possivelmente”, “porventura”, “por hipótese”, “por acaso”. É este segundo uso o que pode causar alguma confusão.

A dica que vai ajudá-lo a não confundir uma coisa com a outra é lembrar que o advérbio “acaso” equivale à locução adverbial “por acaso”, podendo ser considerado uma redução desta, de modo que “acaso” é permutável por “por acaso”, enquanto “caso” é permutável por “se”.

É por isso que podemos dizer algo como “Se acaso me quiseres” (se porventura me quiseres), como fez Chico Buarque na sua bela canção Folhetim:

Se acaso me quiseres/ Sou dessas mulheres/ Que só dizem sim/ Por uma coisa à toa/ Uma noitada boa/ Um cinema, um botequim […]

No fragmento que suscitou a nossa refexão, o que cabia mesmo era “caso”:

Caso não encontre a edição em sua caixa de entrada, após confirmação da assinatura, procure lá.

Na voz de Gal Costa, Folhetim: https://www.youtube.com/watch?v=n8pBj706M3s

A Bela foto do Chico Buarque é de Fracisco Proner/ Reprod. CNN.

“Prezar por” ou só “prezar”?

DEU NA MÍDIA. GRAMATICAIS. Os jornais reproduziram uma declaração do presidente da Febraban, na qual ele empregou uma regência que, embora seja vista com alguma frequência em textos que se pretendem formais, contraria a tradição da língua. Vejamos o que ele disse:

Prezamos pela importância da interlocução e do diálogo, pois precisamos buscar, iniciativa privada e poder público, a melhoria do ambiente de negócios para aumentar a produtividade e a competitividade do Brasil”, disse Sidney.

“Prezar” é um verbo transitivo direto, ou seja, não requer uma preposição antes de seu complemento. Em outras palavras, não dizemos que alguém “preza por alguma coisa”, mas, sim, que “preza alguma coisa”. “Prezar” é ter apreço por algo, respeitar (prezo a liberdade, prezo a sua sinceridade). A fórmula de polidez “prezado (a)” é o particípio passado desse verbo; “prezados ouvintes”, por exemplo, quer dizer “respeitados ouvintes” ou “queridos ouvintes”.

Assim, retomando a frase de Isaac Sidney, percebemos que o que ele, de fato, preza é a interlocução, não “a importância da interlocução”. A frase poderia ter sido formulada, por exemplo, das duas maneiras a seguir (compare-as):

 Prezamos a interlocução e o diálogo, pois precisamos buscar, iniciativa privada e poder público, a melhoria do ambiente de negócios para aumentar a produtividade e a competitividade do Brasil”, disse Sidney.

Acreditamos na importância da interlocução e do diálogo, pois precisamos buscar, iniciativa privada e poder público, a melhoria do ambiente de negócios para aumentar a produtividade e a competitividade do Brasil”, disse Sidney.

Na elaboração improvisada de uma frase, nem sempre atentamos aos seus pormenores, e o interlocutor geralmente capta a ideia geral. Neste espaço, procuramos refletir sobre a língua de maneira mais detida, portanto os textos trazidos para cá o são por nos parecerem úteis a esse propósito.

“Ter que” e “ter de”

QUESTÃO DO LEITOR. GRAMATICAIS. Um de nossos leitores perguntou qual é a diferença entre “ter que” e “ter de”. Nos textos abaixo, extraídos de jornais, não há distinção, como se poderá perceber. Vejamos:

Uma economia com maior prosperidade, com resiliência para as questões climáticas tem que ser vista como sinônimo de desenvolvimento. 

Sinceramente, eu jamais iria imaginar que em pleno século 21 o Brasil voltaria ao Mapa da Fome. Num país onde tudo o que se planta dá, 33% da população passa fome e 106 milhões de pessoas têm de pular as refeições.

É bom que se diga logo de saída que, hoje, as duas construções são consideradas corretas e equivalentes quando usadas para exprimir obrigação. É a segunda, no entanto, que é recomendável à luz da tradição (ter de fazer algo, ter de estudar muito, ter de pegar os filhos na escola etc.).

O uso original de “ter que” aparece em construções nas quais o “que” é um pronome relativo. Pode o pronome ter um antecedente, como ocorre em “tenho muito que fazer” (muito = muita coisa) ou mesmo aparecer sem antecedente, como vemos em “hoje não tenho que fazer” (que = coisa que), cujo sentido é o mesmo de “hoje não tenho nada a fazer” ou “hoje não tenho o que fazer”. Note-se que o “o” (com valor de “aquilo”, ou seja, como pronome demonstrativo) se incorporou à construção, mas seu emprego não é necessário.

No romance Os Maias, de Eça de Queirós, lemos a seguinte passagem:

Quando não tinha que escrever, estirava-se no sofá, com um livro aberto, os olhos no ponteiro do relógio.

A construção “não tinha que escrever” nada tem que ver com a ideia de obrigação. Quer o narrador dizer que o personagem, quando não tinha alguma coisa que escrever nas cartas, estirava-se no sofá. A passagem imediatamente anterior a essa, que ajuda a compreender o seu sentido, é esta:

Mas ordinariamente, quando respondia, falava só ao Ega dos Olivais, dos seus passeios com Maria, das conversas dela, do encanto dela, da superioridade dela… Ao avô não achava que dizer; nas dez linhas que lhe destinava, descrevia o calor, recomendava-lhe que não se fatigasse, mandava saudades para os hóspedes, e dava-lhe recados do Manoelzinho – que ele nunca via.

Veja-se igualmente, em “não achava que dizer”, o uso do pronome relativo (“que”) sem antecedente, que equivale a “coisa que”. Temos, em Machado de Assis, no romance Quincas Borba, caso semelhante:

Regulados os preliminares para a liquidação da herança, Rubião tratou de vir ao Rio de Janeiro, onde se fixaria, logo que tudo tivesse acabado. Havia que fazer em ambas as cidades; mas as coisas prometiam correr depressa.

O narrador explica que havia (coisas) que fazer tanto em Barbacena como no Rio de Janeiro. Na literatura, como se vê, é bastante clara a distinção entre “ter que” e “ter de”. Ignorá-la pode levar à compreensão equivocada daquilo que o escritor está dizendo.

Não vamos aqui afirmar que está errado usar “ter que” para exprimir obrigação, já que essa estrutura assim se consolidou, mas é fato que, nas locuções verbais, em geral, aparecem preposições a ligar dois verbos, não a partícula “que” (hei de vencer, pôs-se a fazer, acabou de fazer etc.).

Assim, àqueles que gostam de cultivar o idioma recomenda-se observar a distinção, usando “ter de” no sentido de obrigação e “ter que” no sentido de “ter coisa que”.