“Melhor”, “mais bem” e “mais bom”

GRAMATICAIS. Normalmente aprendemos que não existe “mais bem” nem “mais bom”, apenas “melhor”, mas há situações em que isso não é verdade. A frase abaixo, por exemplo, traz uma construção que, embora seja comum no português do Brasil e aceita por alguns gramáticos, está em dsacordo com a tradição gramatical. Vejamos:

O Haddad é hoje o candidato que está melhor posicionado dentro do campo progressista.

“Melhor”, de fato, substitui tanto “mais bem” quanto “mais bom” na maior parte dos casos. Dizemos, por isso mesmo, que determinados hábitos são melhores [no lugar de“mais bons”] para a saúde do que outros ou mesmo que o paciente já está melhor [no lugar de“mais bem”].

Há, porém, construções em que o advérbio de intensidade “mais” modifica um nome composto cujo elemento inicial é o advérbio “bem”. Nelas, aparece a sequência “mais bem”. É o que ocorre, por exemplo, quando dizemos que uma pessoa é mais bem-humorada que outra. Já reparou que não dizemos “melhor humorada”? Isso vai acontecer, de modo geral, nas estruturas comparativas ou superlativas toda vez que o advérbio “bem” anteceder uma forma verbal no particípio (uma casa mais bem decorada que outra, um carro mais bem equipado que outro, o candidato mais bem posicionado na disputa).

Quanto a “mais bom”, embora seja mais raro, também existe. A sequência ocorre quando se comparam duas qualidades de um mesmo ser. Por exemplo: O carro é mais bom que econômico. Também pode aparecer a sequência “mais boa” em uma construção como esta: Ele demonstrou mais boa vontade que ela, que se explica pelo fato de “boa vontade” constituir um sintagma nominal preso. O leitor se lembrará de outros casos.

Segundo a tradição gramatical, a forma sintética “melhor” não se aplica nos casos em que “bem, bom ou boa” modificam outro termo. Dessa forma, a frase de abertura seria redigida assim:

O Haddad é hoje o candidato que está mais bem posicionado dentro do campo progressista.

“Atentar para”

GRAMATICAIS. O verbo “atentar”, empregado no sentido de observar ou olhar com atenção, não é pronominal. Verbos pronominais são aqueles que se constroem necessariamente com um pronome átono, como “arrepender-se” (eu me arrependo) ou “queixar-se” (eu me queixo). Embora não seja esse o caso de “atentar”, temos visto, já com alguma frequência, esse uso no registro oral, do qual tem migrado para os textos da imprensa. Vejamos um caso:

Nós temos que nos atentar para as eleições parlamentares. Não adianta só eleger um presidente, um governador, e ter um parlamento que expresse o pior da sociedade brasileira.

No trecho acima, extraído de um jornal, vemos o emprego abusivo do pronome átono (nos). Vamos reforçar que o verbo “atentar” não é pronominal. Isso quer dizer que não se diz “eu me atentei para”, e sim “eu atentei para”. Assim:

Nós temos de atentar para as eleições parlamentares.

Não se confunda, porém, essa com outra acepção do verbo, qual seja, a de praticar atentado contra algo ou alguém, caso em que se diz “atentar contra” (Atentou contra a vida das crianças); o mesmo vale para o sentido figurado (Atentou contra a moral e os bons costumes).

Assim, temos “atentar contra algo ou alguém” (cometer atentado) e “atentar para algo” (olhar para algo com atenção). Cada preposição (contra, para) está associada a um dos significados do verbo. Certo?  

Concordância com infinitivos

GRAMATICAIS. Um interessante caso de concordância verbal é aquele em que o sujeito é composto de dois ou mais verbos no infinitivo. Períodos que contêm essa estrutura costumam provocar dúvida: Beber muita água e praticar exercícios diariamente faz bem à saúde… ou fazem bem à saúde? Que diz a sua intuição?

Vejamos um fragmento extraído de uma notícia de jornal, em que o redator fez o seguinte:

De fato, negar, ignorar ou banalizar certos temas têm um custo altíssimo para a humanidade. 

O redator, nesse caso, não pôde socorrer-se do ouvido, por assim dizer, pois as formas “tem” (singular) e “têm” (plural) distinguem-se unicamente pela grafia. É possível, então, que tenha buscado analogia com a regra do sujeito composto (que leva o verbo para o plural), afinal o sujeito do verbo “ter” no período acima é, de fato, composto de três núcleos. Ocorre, porém, que esses núcleos são infinitivos (negar, ignorar ou banalizar), o que vai mudar o critério de concordância.

Fossem três substantivos, aí sim, o verbo se flexionaria (A negação, a ignorância ou a banalização de certos temas têm um custo altíssimo), mas os infinitivos comportam-se como um conjunto de ações, que, em bloco, funcionam como sujeito de um verbo que se manterá no singular. No trecho em questão, teríamos, então, a forma “tem”, sem o acento gráfico indicador da flexão de número. Assim:

De fato, negar, ignorar ou banalizar certos temas tem um custo altíssimo para a humanidade. 

Quanto à nossa frase do primeiro parágrafo, acertou quem apostou na primeira versão:

Beber muita água e praticar exercícios diariamente faz bem à saúde.

Essa regra não se aplica, porém, a infinitivos que contenham ideias opostas, pois, naturalmente, estas não poderiam ser tomadas “em bloco”. Por exemplo:

  1. Nascer e morrer são nossas únicas certezas.
  2. Ganhar e perder fazem parte do jogo.

Fique atento ao uso dos infinitivos como sujeito. Mantenha o verbo principal no singular, exceto se os infinitivos forem antônimos. Certo?

“Nenhum” ou “nem um”?

GRAMATICAIS. Dia desses, na leitura do noticiário, topei com uma frase na qual, nitidamente, houve confusão entre “nenhum” e “nem um”. A verdade é que, em algumas situações, essa distinção é bem sutil. Vamos começar a examinar o assunto pelo período extraído do site de notícias. Vejamos:

Não concordei nenhum pouco com aquilo. Foi uma covardia muito grande!

Nesse período, não estava muito difícil prceber que a forma correta seria “nem um pouco”. O primeiro passo era observar que “um pouco” é uma expressão adverbial, pois modifica, quantificando, a ação de concordar ( “concordar um pouco” é uma maneira de dizer “concordar parcialmente”). O advérbio “nem”, por sua vez, incide sobre essa expressão, enfatizando-a, como se disséssemos “nem mesmo um pouco” ou “nem sequer um pouco”. Portanto, escrevamos isto:

Não concordei nem um pouco com aquilo.

Há situações, porém, em que o uso de uma ou outra grafia atende a significados específicos. Vamos observar as duas frases seguintes:

  1. Nem um profissional faria isso. [nem mesmo um profissional]
  2. Nenhum profissional faria isso. [profissional nenhum]

Na primeira delas, queremos dizer que “nem mesmo um profissional” seria capaz de fazer determinada coisa, estando pressuposto que o profissional se compara a não profissionais; na segunda, excluímos todos os profissionais da categoria de pessoas que fariam determinada coisa. Temos, portanto, ideias diferentes!

Para facilitar o raciocínio, convém notar que o pronome indefinido “nenhum” pode ser colocado depois do substantivo (Profissional nenhum faria isso), o que não ocorre com “nem um”. Essa é uma forma prática de verificar qual das duas grafias é a mais adequada no contexto.

Vejamos:

  1. O mágico tirou as moedas da manga e as enfiou no bolso. Disse duas ou três palavras e, de repente, já não tinha nenhuma moeda no bolso. [moeda alguma/ moeda nenhuma]
  2. Quis ajudar o pedinte, mas não tinha nem uma moeda no bolso. [nem mesmo uma moeda/ nem sequer uma moeda]

Como vemos, a escolha de uma grafia ou outra, em alguns casos, depende do sentido pretendido. Certo?

Duplicação: entenda e evite

PARA ALÉM DA GRAMÁTICA. Como veremos hoje, nem só a gramática sustenta um texto bem escrito. Há certos arranjos de frase que funcionam bem e outros que deixam a desejar. Vamos observar um caso curioso, cada vez mais frequente nos textos da imprensa:

Naquela data, diante de uma multidão na Esplanada dos Ministérios, Bolsonaro pregou desobediência a decisões de Alexandre de Moraes, relator de inquéritos que miram aliados do presidente.

No trecho acima, os termos “Bolsonaro” e “presidente”, embora se refiram à mesma pessoa, parecem designar dois seres diferentes. Isso ocorre porque o pronome (ele), que serviria para retomar o nome (Bolsonaro), é substituído por um substantivo (presidente). Caso não se soubesse que Bolsonaro é o presidente, estaria feita uma grande confusão.

Como nosso objetivo é examinar a construção, não nos interessa saber se o leitor entendeu a frase porque já conhecia o assunto. O texto bem escrito deve permitir a qualquer leitor entender o que se diz.

É bom que se diga que o uso de hipônimos (termos mais específicos) e hiperônimos (termos mais genéricos) é muito bem-vindo nas boas redações, mas desde que não produza o efeito de duplicação. Em geral, esse efeito desagradável ocorre quando o hiperônimo ou o hipônimo é empregado dentro do mesmo período (antes do ponto final), como ocorreu no exemplo acima.  Nesse caso, o ideal seria usar “ele” (pronome) no lugar de “presidente” (hiperônimo). Assim:

Naquela data, diante de uma multidão na Esplanada dos Ministérios, Bolsonaro pregou desobediência a decisões de Alexandre de Moraes, relator de inquéritos que miram aliados dele.

Vejamos, agora, uma situação em que o hiperônimo seria o ideal:

Naquela data, diante de uma multidão na Esplanada dos Ministérios, Bolsonaro pregou desobediência a decisões de Alexandre de Moraes. O presidente e o ministro do STF vêm medindo forças nos últimos meses.

“Trata-se de” não tem sujeito

GRAMATICAIS. O verbo “tratar” tem várias acepções, que logo virão à mente do leitor (tratar bem ou mal uma pessoa, tratar uma doença ou de uma doença, tratar-se com antibióticos, tratar um assunto ou de um assunto etc.), mas hoje interessa examinar um uso muito particular desse verbo.

Estamos falando da expressão “trata-se de”, que tem mais ou menos o mesmo sentido de “ser” ou de “consistir em”. Nessa construção, o verbo permanece na terceira pessoa do singular (Trata-se de um assunto delicado; Trata-se de temas delicados). Nesse sentido, “trata-se” é uma forma fixa que, normalmente, anuncia a retomada de um elemento que já apareceu no texto. Vejamos dois exemplos, ambos corretos:

  • Muitas pessoas acham que devem lavar o frango antes de cozinhá-lo. Trata-se de um erro comum e que aumenta o risco de intoxicação alimentar.
  • Realizado no último domingo, o primeiro turno do pleito em que será escolhido o novo presidente da Colômbia foi marcado pela rejeição, por parte expressiva do eleitorado, do establishment político que vem governando o país nas últimas décadas. Trata-se de um desfecho que não chega a surpreender. 

Nos casos acima, a expressão equivale a “esse é” ou “esse foi” (“esse é um erro comum”, “esse foi um desfecho”). Como se vê, “trata-se de”, nesse sentido, não tem sujeito expresso, ou seja, não há algo ou alguém que “se trate”. A estrutura costuma ser analisada como um caso de sujeito indeterminado, sendo a partícula “se” o índice dessa indeterminação do sujeito. Dito isso, examinemos a seguinte passagem:

O nome de Givaldo ela só foi saber 15 dias depois. Aí finalmente se deu conta de que ele não se tratava de uma “divindade”.

Givaldo foi o mendigo que se tornou celebridade por ter sido, segundo noticiado, convidado por uma mulher para um encontro sexual dentro de um carro e, depois, ter apanhado do marido dela, que pegou os dois em flagrante. Ela, por sua vez, disse que o teria confundido com uma divindade e o atraído para uma conjunção espiritual. Foi nesse contexto que o jornalista escreveu a frase acima.

Como se vê, o uso de “se tratava” não tem cabimento no contexto, pois o sujeito está expresso (“ele”). O sentido pretendido seria alcançado com o uso do verbo “ser” (“ele não era uma divindade”). Assim:

 O nome de Givaldo ela só foi saber 15 dias depois. Aí finalmente se deu conta de que ele não era uma “divindade”.

Concordância do sujeito passivo

GRAMATICAIS. Sabemos que o verbo concorda em pessoa e número com o sujeito da oração, certo? É por isso que dizemos que ele ouviu e que eles ouviram alguma coisa. Essa flexão da forma verbal assinala a harmonia com o sujeito. Há casos, porém, em que, por não perceber qual é o sujeito da oração (uma questão de sintaxe), a pessoa não faz a concordância. Vejamos um exemplo de situação corriqueira:

Do ex-presidente só se ouviu promessas trabalhistas e a negação da privatização da Eletrobras, tema tão candente para o eleitorado. 

Extraído de um texto de um jornalista, o fragmento apresenta um desses casos de negligência da concordância verbal. A percepção de que o pronome “se” indetermina o sujeito leva muita gente a pensar que todo “se” tem essa função. Na verdade, não é bem assim.

Com os verbos transitivos diretos (como “ouvir”, já que alguém ouve alguma coisa), o “se” tem outra função. Ele transforma o objeto direto (a coisa ouvida) em sujeito. No exemplo acima, as promessas trabalhistas e a negação da privatização da Eletrobrás foram as coisas ouvidas no discurso do ex-presidente, as quais, nessa construção, têm a função de sujeito.  Poderíamos dizer que “só foram ouvidas promessas trabalhistas e a negação…”. Estamos diante de um sujeito passivo, ou seja, de um sujeito que sofre a ação expressa pelo verbo.

Se o redator tivesse optado pela estrutura analítica (“foram ouvidas”), certamente teria feito a concordância corretamente. O pronome “se”, empregado com os verbos transitivos diretos, integra uma estrutura em que o sujeito é passivo, mas o verbo mantém a forma ativa (ouviram-se promessas = promessas foram ouvidas). Assim:

Do ex-presidente só se ouviram promessas trabalhistas e a negação da privatização da Eletrobras, tema tão candente para o eleitorado. 

“Aura”, não “áurea”

GRAMATICAIS. SEMÂNTICA. Nas redes sociais, é comum a confusão entre as palavras “aura” e “áurea”, esta última tomando o lugar da primeira. O problema parece ter chegado à universidade, dado que observado em artigo de revista acadêmica no qual o autor lamentava a “áurea antiuniversitária e o anticientificismo instaurados nos últimos quatro anos no Brasil”.

Trata-se de um par de parônimos, palavras que guardam entre si certa semelhança formal, embora estejam longe de ter o mesmo significado. “Áurea” nem mesmo é um substantivo, donde, de saída, já soa estranho dizer “uma áurea” do que quer que seja.

Esse adjetivo refere-se ao ouro (“aurum”, em latim) e àquilo que é da sua cor ou que brilha como ele. No sentido figurado, estende-se à ideia de magnificência, brilho (elegância áurea, Lei Áurea). É o termo usado na expressão “proporção áurea”, que, desde a Antiguidade, é usada na arte como uma espécie de padrão de simetria baseado na natureza (coisa que bem pode ser explicada por um matemático).  

O substantivo “aura”, por sua vez, pode designar um vento ameno ou aragem, mas, mais do que isso, descreve um conjunto de elementos sutis que caracterizam uma pessoa (O diretor tem certa aura de seriedade), um lugar (O local tinha inegável aura de mistério) ou qualquer outra coisa. No campo da parapsicologia, a aura é uma espécie de campo de energia que irradia dos seres vivos.

O termo, naturalmente, tem seu uso expandido e poderia ser facilmente compreendido caso tivesse sido usado no lugar de “áurea” na frase “a áurea antiuniversitária e o anticientificismo instaurados nos últimos quatro anos no Brasil”. Certamente, a intenção do autor foi dizer que há uma “aura antiuniversitária”, ou seja, uma aparência desse estado de espírito coletivo de negação do saber acadêmico.

Os “paparazzis” e a pólvora

GRAMATICAIS. Pinçada de um texto de seção de variedades de um jornal paulista, a frase abaixo traz duas questões para quem se interessa por gramática. Vejamos o que escreveu o simpático redator, ao narrar a história de uma moça que se tornou conhecida por costurar vestidos de noiva para celebridades:

A cena foi fotografada por paparazzis e espalhou-se pelas redes como pólvora.

A esta altura, muita gente já sabe, pelo menos, que “paparazzi” é uma palavra italiana, o que é um bom motivo para desconfiar de que o “i” final seja uma marca de plural. Sim, em italiano, não se usa o “s” para indicar plural.

Os fotógrafos indiscretos, perseguidores de celebridades, tornaram-se conhecidos na Itália pelo nome de “paparazzi”, que é o plural de “paparazzo”, graças ao filme “La dolce vita”, de Federico Fellini, em que um desses profissionais tem o sobrenome Paparazzo. O nome próprio logo se tornou um nome comum, como costuma acontecer no Brasil com marcas de produtos (um “danone” no lugar de um iogurte, por exemplo, e outros casos que vierem à memória do leitor). Bem, foi assim que Paparazzo passou a ser sinônimo de certo tipo de fotógrafo, ou seja, aquele que está sempre no encalço de pessoas famosas, em busca do registro de alguma intimidade.

Como se trata de nome italiano, sua flexão segue as regras do idioma italiano, certo?. Dessa forma, mesmo em português, usamos o singular “paparazzo” e o plural “paparazzi”, portanto “os paparazzi”, sem o “s”.

Uma segunda observação suscitada pela frase diz respeito à formulação “espalhou-se como pólvora”. Dito dessa forma, temos a impressão de que a capacidade de se espalhar é uma propriedade da pólvora em si, o que é um tanto duvidoso. O que, de fato, se propaga rapidamente é o “rastilho de pólvora”, que é um fio coberto de pólvora. Pode parecer um detalhe, mas é a soma desses pormenores que faz o texto fluir ou não. Fica a dica e aqui vai uma sugestão:

A cena foi fotografada por paparazzi e espalhou-se pelas redes feito um rastilho de pólvora.

Uma segunda observação diz respeito à formulação “espalhou-se como pólvora”. Dito dessa forma, temos a impressão de que a capacidade de se espalhar é uma propriedade da pólvora em si, o que é um tanto duvidoso. O que, de fato, se propaga rapidamente é o “rastilho de pólvora”, que é um fio coberto de pólvora. Aqui vai a sugestão:

A cena foi fotografada por paparazzi e espalhou-se pelas redes sociais feito um rastilho de pólvora.

“Posto que”: causa ou concessão?

GRAMATICAIS. REVISORES. Nos dois trechos abaixo, o primeiro escrito por uma roteirista de TV e o segundo por um desembargador, veremos a locução conjuntiva “posto que” aparecer com nítido valor causal, ou seja, equivalente a “uma vez que”. Vamos aos fragmentos, ambos publicados na imprensa:

“Não sou roteirista, mas dentista. O que eu tenho com isso?” Tudo, posto que qualquer um é roteirista da própria vida.

Os documentos não comprovam a hipossuficiência do apelante [Garcia], mas, ao contrário, posto que é deputado estadual e possui remuneração bem acima de três salários mínimos”.

Esse uso popularizou-se no Brasil, mas a locução “posto que”, em sua origem, é concessiva (equivalente a “embora”), como se vê ainda em Portugal e em muitos autores brasileiros também. Dito isso, os dois fragmentos acima ganhariam em precisão se neles fosse usada uma conjunção causal (já que, uma vez que, porque etc.).

Os defensores do uso da locução com sentido causal sempre se lembrarão do emprego dela feito por Vinicius de Moraes no belíssimo “Soneto da Separação”, cujos versos finais, em que o eu lírico fala do amor, são muito conhecidos: “Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure”. De fato, Vinicius toma a locução como causal – já que o amor é chama, não há como desejar que seja imortal, ideia que se resolve com o paradoxo mais famoso da literatura brasileira: “que seja infinito enquanto dure”.

Alguns gramáticos dirão que Vinicius lançou mão de uma licença poética, que é uma espécie de “autorização” para transgredir uma norma gramatical em nome de um propósito estético. Nesse caso, teríamos de buscar o propósito estético dessa escolha no contexto. Outra possibilidade, menos glamorosa, é que esse uso já estivesse razoavelmente fixado na linguagem cotidiana brasileira e tenha soado natural aos ouvidos do poeta.

Machado de Assis, por exemplo, usa regularmente essa locução, sempre com sentido concessivo. É interessante, aliás, observar uma passagem de seu romance “Quincas Borba”, a qual um leitor apressado de hoje, que desconhecesse o sentido de “posto que”, poderia interpretar incorretamente. Vejamos:

Quincas Borba leu-me daí a dias a sua grande obra. Eram quatro volumes manuscritos, de cem páginas cada um, com letra miúda e citações latinas. O último volume compunha-se de um tratado político, fundado no Humanitismo; era talvez a parte mais enfadonha do sistema, posto que concebida com um formidável rigor de lógica.

Quis dizer o narrador que, embora concebida com um formidável rigor de lógica, a obra era enfadonha, ou seja, opôs um elogio a um demérito. Um leitor apressado poderia pensar que a obra era enfadonha por causa do rigor de lógica. É claro que a ideia não se sustentaria no contexto da obra, mas ignorar o sentido de “posto que” pode tornar a compreensão do texto mais difícil.

A conjunção concessiva sugere oposição de ideias, mas não uma oposição direta como a das conjunções adversativas (mas, porém, todavia etc.). A concessiva introduz uma oração que indica uma circunstância de oposição que é insuficiente para mudar o curso de uma ação (Por mais que tentasse, não conseguia ler as letras miúdas; Embora chovesse forte, não desistiram do passeio; Posto que não concordasse com as ideias do grupo, decidiu endossá-las).